Falar de São Martinho de Dume (510-579) não é de forma alguma uma tarefa fácil. Esta nossa certeza encontra fundamento em várias razões, das quais invocamos apenas duas, por se nos afigurarem ser as que melhor elucidam o que acabamos de afirmar. A primeira dificuldade depara-se-nos quando ao tentarmos descortinar dados referentes à sua vida, nos vemos confrontados com uma constante escassez de apoios biográficos ; a segunda, por São Martinho de Dume ser um dos maiores Padres da Igreja de todos os tempos e sem dúvida nenhuma o maior de seu século.
No entanto, conscientes destas limitações, ousamos – ainda que sucintamente – relembrar alguns acontecimentos sobre a sua vida, sublinhar a sua postura em igreja como monge, teólogo, liturgista, liturgo e obviamente salientar a sua admirável acção pastoral enquanto Arcebispo de Braga e Metropolita Primaz das Espanhas.
São muitas as hipóteses veiculadas, inclusive nos meios académicos, no que concerne ao local de nascimento de São Martinho; nós decidimo-nos por aquela que a tradição da igreja nos apresenta como sendo a mais crível. No Epitáfio inscrito no seu túmulo, por si mesmo redigido, podemos ler: “Nascido na Panónia…”, isto é, na actual Hungria.
Conterrâneo de São Martinho de Tours (+397), por quem nutria uma profunda veneração, parte muito cedo para o Oriente onde aprendeu a língua grega e se ínstruiu nas Ciências Eclesiásticas, tão exaustivamente, que ninguém o excedeu no seu tempo.
Os lugares em que São Martinho terá vivido no Oriente, bem como o número de anos que aí passou, não se podem mencionar com precisão, mas olhando para a sua obra verdadeiramente Apostólica levada a cabo nas Espanhas, quer no aspecto monástico quer litúrgico, depreendemos que certamente viveu entre os monges do Egipto, em Constantinopla e em Jerusalém.
Já a caminho da Galiza, ter-se-á ainda demorado algum tempo na Gália (actual França), onde havia pouco tempo partira para os Céus São Cesário de Arles, último representante desse grande centro de monaquismo e de Teologia que fôra o Mosteiro de Lerins.
São Gregório de Tours (+594) afirma que o nosso Santo Bispo Martinho pisou terras do actual Portugal por volta do ano 550, sendo enviado por Deus para “aquela terra de gente estranha, a fim de a regar com as torrentes da sua sabedoria”.
Em 556 é sagrado Bispo para o Mosteiro de Dume que ele próprio fundara, criando aí uma autêntica escola monástica e litúrgica. Vagando a Sé de Braga aquando do nascimento para os Céus do Arcebispo Lucrécio, São Martinho ascende ao Sólio Metropolitano ainda no ano de 569. Fôra o principal animador dos Concílios de Braga realizados em 561 e 572, tendo já presidido ao segundo na qualidade de Metropolita.
São Martinho conhecia por experiência pessoal a vida monástica dos monges da Palestina e do Egipto, onde “adquiriu grande caudal de ciência”, como no-lo atesta São Gregório de Tours. A época em que permaneceu nessas paragens coincide com o reinado do Imperador de Bizâncio Justiniano (482-565), espaço de tempo particularmente conturbado por constantes controvérsias de índole religiosa, originadas nas questões cristológicas que os Concílios de Éfeso (431) e Calcedónia (451) não haviam conseguido cercear. Nesta altura em que São Martinho demanda terras do Egipto e da Palestina, o monaquismo alcança o seu apogeu nesses territórios do Império, fazendo brotar do seu seio homens como São Savas (+532) e São Teodósio (+529), expoentes máximos da vida cenobítica.
Ao chegar à Península, o futuro Arcebispo de Braga cria imensos mosteiros e ímpregna-os do espírito monástico oriental que o habitava, dotando-os com uma regra monástica própria. O Mosteiro de Dume, do qual era Abade (e Bispo depois de 556), foi de todos o mais conhecido no Ocidente, atingindo um tal esplendor que se tornou um exemplo incontestável, para toda a Igreja, da verdadeira vida comunitária, tendo albergado para cima de uma centena de monges ainda no tempo do seu glorioso Pai espiritual.
Como teólogo, não encontramos no seu século (VI), nenhum outro Bispo tão esclarecido nem tão profundamente conhecedor da Tradição e Teologia Ortodoxas.
Os Padres da Igreja são os únicos Doutores esclarecidos e legítimos da Igreja, os comentadores idóneos e insuspeitos da Sagrada Escritura. Não os compreendendo neste sentido, falsearemos o seu primeiro objectivo, esquecendo a importância das suas obras, desvirtuando necessariamente o fim com que as escreveram. Legaram-nos uma enumerável obra escrita com o intuito e a preocupação de permanecerem, eles e aqueles para quem escreveram,dentro da Tradição da Igreja. Nem as amarras mais fortes conseguiram obrigar a que a sua doutrina ficasse circunscrita aos locais geográficos onde viveram; por isso os seus escritos correram velozes do Oriente para o Ocidente e vice-versa, libertando-se das regiões em que nasceram, dando alento e afervorando os cristãos na fé. Fé que Cristo nos deu, os Apóstolos nos transmitiram e que repousam inteira, intacta e inalterável, na Tradição da Igreja. Podemos então afirmar que os Padres da Igreja, entre os quais temos o nosso Glorioso e Santo Pai Martinho, são os catequistas probos e insofismáveis e as suas obras a catequese por excelência.
Nós, cristãos ortodoxos, mal marcámos o início da era patrística e, sobretudo, não fixámos o seu fim, uma vez que o Espírito Santo sopra onde e quando quer, continuando, agora e no futuro, presente na Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica do Credo; guiando-A na Verdade, suscitando no presente, homens que descubram nos ensinamentos, de Cristo resposta às heresias dos nossos dias.
Se o tempo e o espaço nos permitissem analisar detalhadamente as obras de São Martinho, comprovaríamos como em todas elas transparece a Pureza cristalina da Fé e Tradição Ortodoxas, o mesmo sucedendo no que respeita aos cânones dimanados dos dois primeiros Concílios de Braga; por exemplo, o cânone X do I Concílio determina que os leitores não toquem nos vasos sagrados e o XIII do mesmo Concílio afirma que só aos clérigos seja permitida a entrada no santuário para comungarem e não os leigos, homens ou mulheres, como está ordenado nos cânones antigos.
Todas estas determinações conciliares são ainda hoje respeitadas pela Santa Igreja Ortodoxa e sê-lo-ão igualmente nos dias vindouros, pois continua fiel à ininterrupta Tradição duas vezes milenar, não podendo pactuar nem estar de acordo com as inovações litúrgicas do Ocidente. Ao invés de várias denominações religiosas, a Igreja Católica Ortodoxa – continuadora inflexível, em Portugal e nas Espanhas, da Missão confiada aos Apóstolos, a São Martinho de Dume, São Frutuoso de Braga, São Gens de Lisboa, São Mansos de Évora, Santo Idácio de Chaves, São Pedro de Rates… – permanece fiel a todos os cânones do II Concílio Bracarense, nomeadamente ao III, IV e VII, os quais ordenaram que nenhuma gratificação seja recebida pela ordenação de sacerdotes ou pela administração do Santo Crisma ou do Baptismo.
Não obstante os 1500 anos que nos separam da época em que São Martinho viveu, muitas obras suas chegaram até nós, das quais destacamos duas das mais importantes. A primeira delas intitula-se “De Trina Mersione” (Da Tripla Imersão), redigida por volta do ano 573, na qual o nosso Santo Arcebispo Primaz, intrépido defensor da Fé Ortodoxa, combate o costume existente nas Espanhas de baptizar com uma só imersão, afirmando contumazmente ser tal hábito sabelianista. O Sabelianismo havia sido uma heresia propagada por um heresiarca do séc. II (de nome Sabélius), o qual sustentava que na Santíssima Trindade não há três Pessoas, mas sim uma única Pessoa e uma única Natureza.
É aconselhável que saibamos que na carta de 29 de Junho do ano 538, endereçada por Virgílio, a Profuturo Arcebispo de Braga, o Bispo de Roma não aprova o Baptismo com uma só imersão, mas também o não condena, por se tratar de “ uma tradição local”.
Somos acerrimamente convictos defensores dos costumes e tradições locais quando estes não violam, não adulteram, nem atingem a integridade da Fé e poderíamos até admirar a diplomacia do Papa de Roma, mas entristece-nos muito que tenha sido tão débil na defesa da Doutrina inalterável.
Este pequeno tratado de São Martnho de Dume revela uma erudição assaz minuciosa da sua parte, porque nela está espelhada toda a vasta formação teológica do Santo Arcebispo Dumiense, dando-nos conta de estar familiarizado com os cristãos do Oriente, com as exposições dos Padres da Igreja e com o procedimento de Roma face à questão levantada. Conhece também o comentário de São Jerónimo às Epístolas de São Paulo, bem como as Actas do Papa Silvestre (314-335), às quais faz apêlo.
Na sua obra “ Capitula Martini” – resumo breve dos Concílios orientais – São Martinho refere que o Presbítero não crisma quando o Bispo está presente. Somente na sua ausência o fará. Só quando Braga se viu privada da sua admirável Liturgia é que este costume romano que reserva ao Bispo a administração do Santo Óleo do Crisma, anos após o Baptismo, aí penetrou, bastante tardiamente.
Os três Sacramentos da Iniciação cristã, Baptismo, Crisma e Sagrada Eucaristia são, na Igreja Ortodoxa, hoje como no passado, administrados pelo Bispo ou pelo Presbítero. A heresia combatida tão veementemente por São Martinho, grassa actualmente em algumas denominações religiosas e deu origem a um novo erro: o do Baptismo por aspersão, mesmo quando o Baptismo por tripla imersão é possível.
A tríplice imersão – salvo em ocasiões manifestamente excepcionais – jamais deve ser omitida, porque sem imersão não existe correspondência entre o sinal externo e o significado interior, perdendo-se o simbolismo do Sacramento. O Baptismo; o sinal exterior é a imersão seguida do ressurgimento do neófito das águas baptismais. O simbolismo do Sacramento requer e exige que ele seja imerso ou sepultado nas águas do Baptismo e que delas ressurja para a Vida Eterna.
Desde os primeiros séculos que os três Sacramentos da Iniciação cristã estão ligados e as crianças devem ser baptizadas em tenra idade, confirmadas e admitidas à Santa Comunhão. “ Deixai vir a Mim as criancinhas e não as impeçais – diz Cristo (Mt. 19,14) – pois o Reino dos Céus é para aqueles que se lhes assemelham”. Na Igreja Ortodoxa, por fidelidade à Tradição da Igreja dos primeiros séculos, o neófito, depois do Baptismo e Crisma, comunga pela primeira vez após ter participado na Sagrada Liturgia. As crianças não se devem apresentar pela primeira vez à Comunhão, cerca dos 7 ou 8 anos como na Igreja de Roma, ou na adolescência como é usual entre os Anglicanos. Após ser baptizada e crismada, a criança não pode ser privada da Comunhão. A Igreja Indivisa assim procedia, como o testemunha Santo Hipólito de Roma (séc. III), um dos grandes Padres da Igreja que urge ser mais bem conhecido. O Santo Crisma é uma extensão do Pentecostes; o Espírito Santo que desceu visivelmente sob a forma de línguas de fogo sobre a Virgem Maria e os Apóstolos, é o mesmo que desce invisivelmente sobre as águas do Baptismo. Pela Confirmação (Crisma), o recém-baptizado torna-se um membro da Igreja; torna-se um sacerdote e um profeta, participante no real sacerdócio de Cristo.
Todos os cristãos, porque receberam o Santo Crisma, são chamados a testemunhar e a defender a Verdade que Cristo nos deixou, os Apóstolos guardaram e os Bispos, nossos Pais na Fé nos transmitiram. À semelhança de São Martinho e de todos os demais Santos, a missão primeira de todo o cristão consiste em defender a inviolabilidade do depósito da Fé.
Por tudo isto São Martinho pugnou durante toda a sua vida e, enquanto viveu, a Igreja das Espanhas contou com um campeão na luta contra as heresias, fosse através do seu verbo inflamado e contundente, fosse por intermédio da sua brilhante acção pastoral.
Após haver sido entronizado Arcebispo de Braga, incrementou a missionação enviando presbíteros ao lugares mais distantes da sua Arquidiocese, suscitando a criação de nova paróquias e a fundação de mosteiros. Quando no ano 579 nasce para os Céus, a Metrópole Bracarense tinha o dobro das dioceses, o triplo das paróquias e mais de 20 Bispos sufragâneos (em 561 existiam apenas 8 Bispos sufragâneos). A ele se deve o lançamento da s estruturas da organização eclesiástica em todo o Reino Suevo, que se estendia para Sul da actual cidade de Coimbra, cujo povo (suevo) converteu ao cristianismo, segundo no-lo afirma a Tradição Local.
Impõe-se uma palavra sobre o eminente Liturgo e Liturgista que foi São Martinho de Dume, podendo, com toda a legitimidade, ser considerado o Patrono da Liturgia Bracarense. Infelizmente, o Rito Bracarense sofreu graves danos quando a Arquidiocese de Braga adoptou o Rito Latino em 1080. No século XVI (1558) o Arcebispo Baltazar Limpo introduziu-lhe numerosas interpolações romanas. Tendo praticamente caído no esquecimento nos séculos seguintes, em 1919-1924 uma vez mais é restaurado, sendo totamente desfigurado. Esse rito que a Igreja Católica Romana apelida de Bracarense, nada tem a ver com aquele celebrado por São Martinho, tantas foram as infelizes “ restaurações”, que mais não conseguiram fazer do que conferir-lhe o carácter híbrido que hoje ostenta.
São Martinho de Dume será sempre um ponto de referência obrigatório ao qual todos podem recorrer na certeza antecipada que a Teologia e a Tradição por ele vividas em tudo são conformes com a proclamação do Dogma trinitário no Credo Niceno- Constantinopolitano.
Padre Filipe Malaquias