Há cerca de trinta anos, Karl Rahner afirmou que os cristãos, na sua maioria, são “meros monoteístas” e que, uma vez provada a falsidade da doutrina da Trindade, a maior parte da literatura cristã popular e a mentalidade que ela reflete não precisariam ser alteradas. Infelizmente, tal afirmação não é de todo descabida.
Ao definir a doutrina da Trindade como um mistério que não pode ser compreendido exclusivamente pela razão humana, somos convidados a adotar uma posição como a de Melanchthon, que afirmou: “Nós adoramos os mistérios da Divindade e isto é melhor do que investigá-los.” No entanto, o perigo de não refletir cuidadosamente sobre o que foi revelado e como foi revelado é continuarmos cegos pelos nossos próprios deuses e falsos ídolos, embora estes tenham sido construídos teologicamente.
Então, como podem os cristãos acreditar e adorar o Pai, o Filho e o Espírito Santo e ainda afirmar que existe apenas um Deus e não três? Como se pode reconciliar o monoteísmo com a fé trinitária?
Os comentários que aqui seguem obedecem à estrutura da Revelação, conforme apresentada nas Escrituras e defendida pelos Padres gregos do século IV, a era dos debates trinitários, e, para evitar qualquer confusão a que as explicações frequentemente dão origem, faz-se necessário tecer algumas considerações sobre os seguintes temas: o único Deus, a única substância comum ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo e a unicidade destes três.
Ora, o Pai, isoladamente considerado, é o único Deus verdadeiro. Esta assertiva mantém a estrutura da linguagem do Novo Testamento sobre Deus, onde a palavra theos, com apenas algumas exceções, vem acompanhada por um determinante artigo (“O” ou “Um”), sendo, por isso, em grego, considerada um nome próprio e aplicada somente Àquele a quem Jesus chama de Pai: o Deus mencionado nas Escrituras. Esta mesma construção gramatical foi preservada em todos os Credos antigos, os quais começam pela afirmação: “Creio em Um Deus, Pai (…)”.
Assim, quando lemos: “(…) para nós há um só Deus, o Pai (… ) e um só Senhor, Jesus Cristo” (1 Coríntios 8:6), concluímos que a divindade de Jesus não é proclamada quando Ele é descrito como “Deus” (theos, em grego, quando utilizado sem um determinante artigo, tem o valor de um predicado, podendo, assim, ser empregado quando nos referimos às criaturas, conforme João 10:34-35), mas sim quando Ele é reconhecido como o “Senhor” (Kyrios). Além de ser um título comum (“senhor”), esta palavra veio a ser usada, na fala, para substituir o nome impronunciável e divino de Deus, YHWH. Quando São Paulo declara que Deus concedeu ao Cristo crucificado e ressuscitado o “nome acima de todo o nome” (Filipenses 2:9), esta é uma afirmação de que Jesus é tudo o que YHWH é, sem ser YHWH. Isto veio a ser confirmado nos Credos: “E em um só Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus (…) Deus verdadeiro de Deus verdadeiro.”
De acordo com o Credo de Nicéia, o Filho é “consubstancial ao Pai”. Santo Atanásio, o pai da Ortodoxia, menciona que “tudo o que é dito sobre o Pai, é dito também, nas Escrituras, sobre o Filho, exceto o facto d’Ele ser chamado de Pai” (Sobre os Sínodos, 49). É importante notar quão respeitosa é essa teologia da alteridade total de Deus em comparação com a criação, pois tal doutrina é reguladora de toda a nossa linguagem teológica, uma vez que Deus não pode ser reduzido a um ser que se encontra ao nível dos demais seres. Também é importante ressaltar a essencial assimetria da relação entre o Pai e o Filho: o Filho deriva do Pai; Ele é, como o Credo Niceno enfatizou, “da essência do Pai”, mas eles não derivam de uma fonte comum. Isso é o que geralmente se denomina “Monarquia” do Pai.
Também Santo Atanásio começou a aplicar o mesmo argumento, utilizado para defender a divindade do Filho, em defesa da divindade do Espírito Santo: assim como o próprio Filho deve ser totalmente divino para nos salvar (pois somente Deus pode nos salvar), também deve o Espírito Santo ser divino para dar vida àqueles que estão na morte. Novamente, há aqui uma assimetria, que também remonta à Escritura: recebemos o Espírito d’Aquele que ressuscitou Jesus como o Espírito de Cristo e que nos capacita a invocar Deus como “Abba”. Embora recebamos o Espírito por meio de Cristo, o Espírito procede apenas do Pai, mas isso já implica a existência do Filho e, portanto, o Espírito procede do Pai em relação ao Filho (São Gregório de Nissa, para Ablábio, “Que Não Há Três Deuses”).
Portanto, há um Deus, que é Pai; um Senhor, Jesus Cristo, e um Espírito Santo; três pessoas (hipostases), que são “um” em essência (ousia) e que são igualmente Deus, por possuírem as mesmas propriedades naturais, mas que são realmente distintas umas das outras, pois podem ser conhecidas pelas suas características pessoais, ou seja, para além de essas pessoas serem “um” em essência, cada uma também existe na sua própria e total unicidade.
Há três características que distinguem esta unidade e que foram descritas pelos Padres gregos. A primeira dá-se em termos de comunhão: “A unidade [dos três] está na comunhão da divindade”, como afirma São Basílio, o Grande (Sobre o Espírito Santo, 45), o que significa dizer que a comunhão atua como uma salvaguarda contra qualquer tendência de ver as três pessoas como meras manifestações diferentes de uma única natureza; pois caso fossem, simplesmente, modos diversos através dos quais o único Deus se manifesta, então tal ato de comunhão não seria possível.
Outra característica da unidade divina é a “co-inerência” (pericoresis): o Pai, o Filho e o Espírito Santo residem uns nos outros, totalmente transparentes e interpenetrados uns pelos outros. Esta ideia decorre claramente das palavras de Cristo no Evangelho de João: “Eu estou no Pai e o Pai em mim” (14:11). Tendo o Pai habitado n’ Ele deste modo, Cristo nos revela o Pai; Ele é “a imagem do Deus invisível” (Colossenses 1:15).
A terceira característica reside na unidade da sua atividade (energeia), pois ao contrário de três seres humanos que, na melhor das hipóteses, só podem cooperar, a atividade do Pai, do Filho e do Espírito Santo é uma só. Deus opera, segundo as palavras de Santo Irineu, com as Suas duas mãos, o Filho e o Espírito; tendo sido o homem, sem dúvida, a sua obra mais importante, eis que feito à Sua imagem e semelhança (Contra as Heresias 5, 15.2). Obra esta que abrange, inseparavelmente, tanto a criação como a salvação, pois só é realizada no e pelo Crucificado e Ressuscitado, ou seja, a vontade do Pai é efetuada pelo Filho no Espírito.
Foi assim, pois, que os Padres Gregos, seguindo as Escrituras, sustentaram a existência de apenas um Deus, cujo Filho e o Espírito Santo O são igualmente, numa unidade de essência e de existência, sem comprometer a singularidade do único Deus verdadeiro.
Mas a questão inicial permanece e existem dois caminhos que podemos tomar para responder a essa pergunta. A reflexão teológica é, para começar, uma tentativa de responder à questão central colocada pelo próprio Cristo: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (Mateus 16:15). Ao mesmo tempo, indica também o destino para o qual somos chamados, o destino glorioso daqueles que sofrem com Cristo, que foram feitos “conforme à imagem do Seu Filho, a fim de que Ele seja o primogénito dentre muitos irmãos” (Romanos 8:29). O que Cristo é como primogénito, nós também podemos desfrutar com Ele, quando entramos na comunhão de amor: “E eu dei-lhes a glória que a mim me deste, para que sejam um, como nós somos um” (João 17:22).
Original: fatheralexander.org
Redação corrigida: ortodoxia.pt