Tradução de monja Rebeca (Pereira)
Na Igreja Ortodoxa a luz tem uma grande importância, para não dizer uma importância primordial. A palavra luz está sempre presente nos textos litúrgicos–tanto no decorrer das celebrações como na oração pessoal, acendemos velas e lamparinas a óleo. A luz física, aquela dos astros ou das fontes de luz, torna–se o símbolo da luz eterna do Reino de Deus.
A arte sacra da Igreja Ortodoxa, tanto os ícones como os mosaicos e os afrescos ornamentando as paredes de uma igreja, é essencialmente uma arte litúrgica. Ela coloca em imagens a história da salvação iluminada pelas fontes patrísticas e litúrgicas lidas e cantadas durante os ofícios. Ora, os ciclos litúrgicos ortodoxos correspondem ao ritmo cósmico de nossa terra. “Orai sem cessar” (I Ts. 5, 17) é o mandamento que rege a vida de oração de todo cristão. Esta oração incessante, eterna, encarna–se nos ciclos do tempo terrestre regido pelo curso do sol.
O ciclo litúrgico cotidiano começa à tarde/noite (ao entardecer/anoitecer), segundo a palavra bíblica: “E foi a tarde e a manhã o dia primeiro” (Gn. 1). À hora do pôr do sol, cantamos no ofício de Vésperas “Ó Luz jubilosa, da santa gloria do Pai celeste, imortal, santo e bem–aventurado Jesus Cristo. Chegados ao pôr do sol contemplando a luz vespertina, cantamos o Pai, o Filho e o Espírito Santo, Deus.” Esta “luz jubilosa” não é uma simples expressão verbal da luz incriada do Reino de Deus. Ela exprime aqui a visão do reflexo da luz divina na luz do mundo criado, fazendo jorrar este canto de ação de graças. A pacífica e jubilosa luz do entardecer desperta a espera da luz que se ergue na manhã da Ressurreição.
Em seguida vem a manhã que se inicia pela glorificação de Deus, Criador do gênero humano, ao qual Ele confere a aptidão de ver a luz física que brilha para nós, sendo percebida pelos nossos olhos e também aquela que é percebida pela alma: a Luz Incriada do Reino. No final das Matinas, o Celebrante exclama: “Glória a Ti que nos fizeste ver a verdadeira Luz!”, ao que o povo responde: “Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na terra aos homens de boa vontade…”
O louvor de Deus, Criador e Doador de Luz, um louvor incessante determina ou melhor orienta a vida do homem, em todos os seus atos, e acaba por transfigurá-lo: tal é o ensinamento da Igreja Ortodoxa. Um ser assim “transfigurado” tudo transfigura, seu ambiente, os homens ao seu redor, a natureza que o cerca, tal como conhecemos pelo exemplo de São Serafim de Sarov, que consegue fazer os outros verem a Luz do Reino, na qual ele próprio havia ingressado. Este santo homem saudava aqueles que se lhe acorriam dizendo: “Cristo ressuscitоu, minha alegria!”
Logo, nada a nos surpreender diante dos ofícios litúrgicos de Páscoa, pois que cantam a divina Luz de maneira quase contínua. Se cada domingo é para o cristão ortodoxo o dia da Ressurreição e de sua luz, podemos imaginar que a arte sacra ortodoxa tenta fazer presente o que o texto relata no canto pascal: “Hoje tudo esta repleto de luz, o céu, a terra e o inferno. Que toda a criação cante a Ressurreição de Cristo, em Quem está a sua força!”
A espiritualidade desta arte inseparável da vida litúrgica da Igreja expressa–se, em primeiro lugar, na submissão, na obediência do artista–iconógrafo (pintor de ícones, de iluminuras, de afrescos ou mosaicos) ao seu objetivo espiritual, o que explica o aspecto instrumental de sua obra. É difícil, para não dizer impossível, representar a visão luminosa do mundo espiritual nas formas habituais da arte, pois que ao falar do concreto, a Encarnação de Deus Verbo, o artista–iconógrafo deve mostrar a espiritualidade que constitui a trama do ícone. A realidade “material” da Encarnação exclui todas as formas da arte não – figurativa, ”desencarnada”, e a noção de luz incriada transfiguradora, reveladora do Reino de Deus, não admite o naturalismo.
Inseparável da vida da Igreja Ortodoxa, o ícone é freqüentemente qualificado como “teologia a/em cores”. Como toda verdadeira teologia, o ícone depende da experiência mística e teológica do seu autor (pois a Igreja do Oriente jamais separa a mística da teologia que, segundo ela, são os dois elementos necessariamente complementares em todo esforço humano para se aproximar de Deus). Por isso, os criadores destas “imagens teológicas” – que são os ícones – permanecem quase sempre desconhecidos, devido ao fato de proclamarem uma verdade incomensuravelmente mais importante que sua própria pessoa. Mostrando a luz divina incriada, cantando a realidade espiritual, um pintor de ícones considera apenas a Verdade suprema que o faz esquecer-se de si–mesmo. Mas por isso mesmo, sua personalidade é transfigurada pela resposta descida do Alto. Assim, apagando–se, ou melhor, tornando–se cada mais transparente ao mundo espiritual, o iconógrafo nos mostra este mundo em sua obra.
Para fazer compreender nem que seja um pouco do valor da palavra “ícone” no mundo ortodoxo, teríamos de escrever esta palavra com “I” maiúsculo, pois que o ÍCONE é a imagem par excellence da pessoa ou do acontecimento representados. Ele quer mostrar ao espectador a própria essência, a verdade profunda das pessoas e das coisas, tais como elas se revelam na luz eterna que as banha e penetra. O Ícone recusa nos mostrar a aparência de um instante, mas revela, como por transparência, o significado absoluto do representado. Ele é revelação e ensinamento, participando e participado na troca que se estabelece, entre ele e através dele, entre aquele que ora diante dele e o mundo espiritual. De fato, esta deve ser a função do Ícone, segundo a formulação elaborada no VII Concilio Ecumênico que vema concluir a controvérsia em torno da legitimidade dos Ícones; o ÍCONE deve permitir ao homem ultrapassar o que ele próprio propõe ao seu olhar físico e ajudar seu espírito a se pôr em direçãoao seu Arquétipo.
A luz física nos permite perceber, ver a criação divina e integrá-la em nossa consciência de uma maneira totalmente específica e diferente daquelas que nos são oferecidas pelos outros sentidos. A luz divina nos revela os seres e as coisas na sua verdade e beleza, com as quais o Criador as revestiu em sua origem, sem que sombra alguma venha lhes escurecer. Grandes visionários cujos testemunhos a Bíblia nos cita, tentaram descrever suas próprias visões deste mundo sem trevas, tanto quanto a linguagem humana os permitia. Eis, por exemplo, a visão de São João: ”E Ele mostrou–me a grande cidade, a santa Jerusalém, que de Deus descia do céu, e tinha a glória de Deus. A sua luz era semelhante a uma pedra mui preciosa de jaspe como o cristal resplandecente (…). A cidade de ouro puro, semelhante a vidro puro (…). A cidade não necessitava de sol nem de lua para que nela resplandeçam, porque a glória de Deus a tem iluminado (…). Não haverá mais noite; e não necessitará de lâmpada nem de luz do sol, porque o Senhor Deus os alumiará”. (Ap. 21, 10-11; 18,23-22,5).
Nos Ícones (sobre pranchas, nos afrescos ou mosaicos), não há fonte de luz definida nem sombras demarcadas. Os rostos e as carnes parecem ser iluminados do interior, pela luz que Deus concede a “todo ser humano vindo a este mundo”, segundo uma oração litúrgica que continua assim: “Que brilhe sobre nós a Luz da Tua Face”. As siluetas das personagens e o ambiente destacam-se sobre um fundo claro, na maioria das vezes dourado. É o símbolo da luz celeste, incriada, mas também o meio artístico que impede definitivamente toda vontade de dar uma impressão de profundidade, de criar a ilusão de longas distâncias. O Ícone diz a verdade, não pretende dar ilusão do que quer que seja. Antes deseja significar algo, mostrar o caminho. Tal um sinal ou um símbolo no trânsito (cuja razão de ser se situa num outro plano), jamais procura efeitos de ilusão de ótica.
Pela mesma razão, ou seja, pelo desejo de testemunhar de um mundo de luz pura, o Ícone usa cores francas que podem se sobrepôr, oporem–se uma a outra e se complementarem, mas não misturarem–se, perdendo o seu brilho. Os visionários da Bíblia procuram expressar suas visões comparando a luz colorida apercebida com pedras preciosas ou com o ouro: “Olhei e eis que um vento tempestuoso vinha do norte, e uma grande nuvem, com um fogo a revolver-se, e um resplendor ao redor dela e, no meio uma coisa como de cor de âmbar, que saia dentre o fogo. (…) E por cima do firmamento (…) havia uma semelhança de trono como duma safira, e sobre a semelhança do trono havia como que a semelhança de homem, no alto, sobre ele. E vi como a cor do âmbar; como pelo aspecto do fogo pelo interior dele. (…) Como o aspecto do arco que aparece na nuvem no dia da chuva, assim era o aspecto do resplendor em redor. Este era o aspecto da semelhança da glória do Senhor” (Ez. 1,4; 26-28). Os antigos iconógrafos russos preferiam ver o reflexo deste esplendor celeste nas modestas flores dos campos, as quais lhes inspiravam em suas composições coloridas.
O templo, a igreja que é o espaço litúrgico, o lugar onde as pessoas se reúnem ”em Nome de Jesus Cristo”, segundo o Seu Mandamento, tal como os querubins em torno do o trono de Deus, como no hino litúrgico ortodoxo, a celebrar a Eucaristia que é a Ação de graças por excelência. Este lugar, então, é o próprio símbolo do mundo criado tal como o vê o Criador, sem limites temporais e espaciais. Um poema sírio do século VI descreve a igreja de Santa Sofia de Edessa (dedicada, de fato, a Cristo, que é a Sabedoria ou Sophia de Deus) nos seguintes termos: “Seus vastos e esplendidos arcos representavam as quatro partes do mundo; a multidão e suas cores levavam a pensar nos gloriosos arcos–íris nas nuvens. (…) Eis o seu teto estendido como os céus; sem colunas, abobado e fechado, ornado com mosaico de ouro, tal como as estrelas brilhantes no firmamento. Sua cúpula elevada é comparável aos céus dos céus”. Enfim, o autor do poema conclui: “Elevados são os mistérios deste Templo concernindo o céu e a terra: nele é tipicamente representado (ou seja, simbolicamente) a sublime Trindade, bem como o Plano da salvação de nosso Salvador”.
Os mosaicos ou afrescos que ornamentam uma igreja correspondem então a este programa ideal. São as luzes radiosas dos fundos de ouro dos mosaicos ou os espaços, freqüentemente azuis, dos fundos dos afrescos que tentam mostrar a qualidade da luz sem declínio do Reino eterno de Deus. Tendo presente a importância da imagem, seu rigor tipológico (pois que, como já o vimos, o Ícone deve dizer a verdade acerca de cada personagem, respeitando assim suas características), as igrejas ortodoxas não tinham vitrais coloridos, nascidos certamente da mesma vontade de mostrar um mundo feito de luz e de transparência. Da mesma forma que o Ícone, pela ausência de profundidade, obriga o psiquismo humano a voltar a si-mesmo para encontrar o Arquétipo a partir das profundezas de seu ser espiritual, a Igreja Ortodoxa não permite ao espírito humano vagabundo de divagar, antes o centra novamente face à imagem de Cristo, que domina o edifício, fazendo–nos, mais uma vez, reencontrar no interior de nós–mesmos a divina Imagem, que nos conduzirá ao seu Arquétipo.
Na maior parte do tempo, estamos longe deste ideal, sobretudo em nossos dias. Por costume, apresentamos a história da arte, bem como da arte sacra, como uma evolução, um progresso. Ora, evolução não é sinônimo de aperfeiçoamento – freqüentemente, compreende a destruição da sabedoria adquirida, de culturas, de formas de arte e até mesmo … do homem.
A arte é reputada como reflexo de sua época. E se a época é colocada sob o signo da destruição? Então, como reflexo de seu tempo, a arte vai se autodestruir. Finalmente, a história da arte é uma historia de criação e destruição. Esta luta contínua causa perdas enormes e nos conserva pouca coisa. Sempre é mais fácil destruir que criar…
No decorrer do processo de criação, o homem cria e destrói, anda para frente, se engana e volta atrás, para recomeçar a criar. Mas a única atividade válida do homem é a sua atividade criadora, pois o homem é criado à imagem de seu Criador, e a sua aptidão em criar é a fagulha divina recebida de Deus. De fato, a criatividade é secundária, ela apenas adquire o seu valor primordial quando se refere à sua Fonte e reflete sua luz. Quando o homem esquece esta Fonte de energia criativa, sua atividade torna-se rapidamente destruidora.
Quando penso em tudo o que foi destruído no decorrer da evolução da arte e em tudo o que se ainda destrói deliberadamente, tenho vontade de exclamar como Isaías: “Sentinela (Guarda), que houve de noite?” (Is. 21, 11). É buscando-se a luz que se apercebe que apenas a Luz divina pode nos revelar a própria essência da luz.
“Na Tua Luz, veremos a luz!” (Sl. 36, 10).
Que ela continue, então, a se nos revelar nos santos Ícones!