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Bispo Athenagoras Peckstadt – Casamento, divórcio e novo casamento na Igreja Ortodoxa

Economia e Orientação Pastoral por Dom Athenagoras (Peckstadt) de Sinope [1]

Congresso Internacional – Universidade Católica de Leuven (18-20 de abril de 2005)

  1. INTRODUÇÃO

Muitas vezes, as pessoas perguntam-se qual é a posição da Ortodoxia sobre o casamento. A resposta a essa indagação deve ser procurada no ensino Ortodoxo a respeito do mistério – ou sacramento – do matrimónio. Sabemos que também a Igreja Católica Romana considera o matrimónio como um sacramento. Há aqui, porém, uma diferença muito importante a ser esclarecida. Em primeiro lugar, a Igreja Católica Romana considera que a noiva e o noivo executam, por si próprios, o matrimónio, aquando dos seus votos um para o outro. Já na Igreja Ortodoxa, é o sacerdote ou o bispo que consagra o casamento, que invoca a Deus em nome da comunidade e pede que o Espírito Santo seja enviado (epiclesis) sobre o homem e a mulher e assim os faça “uma só carne“. Além disso, o matrimónio é, para a Igreja Ortodoxa, muito mais um caminho espiritual, uma busca de Deus, o mistério da unidade e do amor, o retrato preparatório do Reino de Deus, do que uma necessidade de reprodução.

  1. O CASAMENTO CRISTÃO: MISTÉRIO – SACRAMENTO [2]

O matrimónio é um mistério  – ou sacramento – que foi instituído com a bênção de Deus durante a criação. O povo escolhido entendeu-o, então, como um mistério que teve o seu início aquando da criação divina. Tal foi confirmado por Cristo, quando disse: “Mas no princípio da criação Deus ‘fê-los homem e mulher’. ‘Por essa razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e os dois tornar-se-ão uma só carne” (Mc 10:6-8).

De acordo com as Sagradas Escrituras, o casamento é construído sobre:

a) a distinção, aquando da criação do ser humano, entre homem e mulher (“E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou” – Gn:1,27);

b) a criação da mulher a partir da costela de Adão (Gn 2:21-24);

c) a bênção de Deus sobre os primeiros seres humanos criados com as palavras: “Frutificai e multiplicai-vos” (Gn 1:27-28).

Esses três elementos fazem do casamento uma praxis espiritual por excelência, não só devido à simples aliança entre duas pessoas, mas, especialmente, devido ao facto de ser uma expressão da vontade de Deus. O pacto natural do matrimónio torna-se, assim, uma aliança divina, daí o seu caráter plenamente místico, o qual a Igreja enfatiza. O principal e, portanto, o elemento essencial do matrimónio é a união de cada pessoa com uma única pessoa do sexo oposto. Embora nem sempre observado na prática, esse elemento do matrimónio – uma única pessoa – mantém-se mesmo depois da queda dos primeiros seres humanos criados no Antigo Testamento [3], tendo sido confirmado pelo ensinamento de Cristo sobre o casamento, por assumir uma semelhança com a relação entre Deus e o povo escolhido.

Aliás, foi São Paulo o primeiro a compreender a essência do ensinamento de Cristo sobre o casamento e a sua santidade, tendo-o descrito como “um grande mistério em Cristo e na Igreja” (Ef 5:32). Essa definição significa, segundo São Paulo, que o vínculo espiritual do amor, do compromisso e da submissão recíproca dos parceiros – que é o vínculo da sua completa unidade – só existe quando se conforma ao amor de Cristo pela Sua Igreja (Ef 5:22-33). A relação dos parceiros a partir do matrimónio é, noutras palavras, tão essencial, intensa e espiritual, como a relação existente entre Cristo e a Igreja [4]. Ora, a união da Igreja – enquanto comunidade dos batizados – com Cristo, bem como a sua manutenção, realiza-se através do sacramento da Divina Eucaristia. Esse é o centro de todos os sacramentos e coloca a humanidade sob uma perspetiva escatológica. Desse modo, o matrimónio “transfigura” a unidade do homem e da mulher numa nova realidade, isto é, visto sob a perspetiva da vida em Cristo [5]. Foi por isso que São Paulo não hesitou em chamar a esse passo decisivo da existência humana de “mistério” – ou sacramento – à imagem de Cristo e da sua Igreja. Essa é a única razão pela qual um matrimónio verdadeiramente cristão pode ser único, “porque é um Mistério do Reino de Deus, que introduz a humanidade na alegria e no amor eterno” [6]. Essa unidade – realizada com o sacramento do matrimónio – não é uma ação unilateral da Igreja. Afinal, o homem não é chamado a participar de forma passiva na graça de Deus, mas sim como um colaborador. E mesmo quando o homem se torna um colaborador, ele permanece sujeito à fraqueza e à pecaminosidade da existência humana.

Sob essa luz, até mesmo a reprodução (1Tm 2:15) é vista como uma cooperação do homem com a criação. O mistério – ou sacramento – do matrimónio torna-se imediatamente relacionado com o mistério da vida, do nascimento das almas humanas, da imortalidade e da sua morte.

  1. O PROPÓSITO DO CASAMENTO

Aqui, torna-se evidente que a Igreja Católica Romana e a Igreja Ortodoxa diferem na compreensão do propósito do casamento. No pensamento teológico Ortodoxo, o matrimónio é, em primeiro lugar, o amor recíproco, a relação e a ajuda entre os cônjuges com vista à sua plenitude em Cristo. Somente depois, vem a restrição da sua paixão sexual [7] e a reprodução do género humano [8]. É notável que, no Novo Testamento, não encontremos nenhuma referência relativa ao matrimónio no que diz respeito à reprodução. Na Igreja Católica Romana, é evidente que a finalidade do matrimónio é a “procriação” ou a reprodução. Entender a reprodução como o principal objetivo do casamento é uma perspetiva redutora da vida conjugal do homem e da mulher. Que valor tem a relação sexual entre um homem e uma mulher em caso de esterilidade ou após a menopausa, ou se a mulher for medicamente incapaz de ter mais filhos? É certo que o casal tem precedência sobre a família, por mais louvável que seja o propósito dessa [9]. A história do estabelecimento do casamento encontra-se no segundo capítulo do livro do Génesis, que trata do facto de que “deixará o homem o seu pai e a sua mãe, e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma carne” (Gn 2:24), sem mencionar a reprodução. São João Crisóstomo referiu-se a isso: “Há duas razões pelas quais o casamento foi estabelecido (…) para fazer com que o homem fique satisfeito com uma só esposa e para lhe dar filhos, mas o primeiro é o mais importante (…) Quanto à reprodução, o casamento não inclui necessariamente isso (…) a prova está nos muitos casamentos nos quais não é possível ter filhos. É por isso que a razão principal do casamento é regular a vida sexual, especialmente agora que o género humano já povoou o mundo inteiro“. [10]

  1. CASAMENTO ENQUANTO IGREJA DOMICILIÁRIA

Os Padres da Igreja disseram-no caracteristicamente: “Onde está Cristo, ali está a Igreja”, o que demonstra que a relação matrimonial tem um caráter eclesiástico. Foi por isso que São Paulo mencionou a “igreja que se reúne na sua casa” (Rm 16:5) e São João Crisóstomo se referiu à “pequena Igreja” [11]. Em Caná da Galileia, Jesus “revelou a sua glória” (Jo 2:11) no seio de uma “igreja doméstica“. Paul Evdokimov afirmou que “esse casamento, por assim dizer, é o casamento do casal nupcial com Cristo. É Ele quem conduz e – segundo os Padres da Igreja – o faz em todos os casamentos cristãos” [12]. O amor recíproco entre o homem e a mulher é um amor que está em comunhão com Deus. Assim, cada momento da sua vida torna-se uma glorificação de Deus, pois como dizia São João Crisóstomo: “O matrimónio é um ícone místico da Igreja” [13].

  1. SANTIDADE E INDISSOLUBILIDADE DO CASAMENTO

Já dissemos que o casamento, na sua forma mais pura, é uma ordem natural de acordo com a intenção divina. É a base da família, que é a comunidade onde os sentimentos mais nobres do homem são capazes de se desenvolver. O matrimónio é, na sua essência, uma instituição santa e a sua santidade foi selada por meio da Igreja, que o vê como uma instituição e um mistério divinos [14]. Não são, portanto, o acordo e o livre arbítrio dos cônjuges que estabelecem o matrimónio, mas é a graça de Deus, em particular, que é essencial e essa é dada através da aprovação da Igreja, na pessoa do bispo [15].

A doutrina sobre a indissolubilidade do casamento é baseada na sua santidade a qual, juntamente com a indissolubilidade do casamento, exalta a monogamia. A esse respeito, faz-se, muitas vezes, referência ao Antigo Testamento (Ml 2:14). Mas, seja como mistério ou sacramento, o casamento cristão é, sem dúvida alguma, confrontado com o estado “decaído” da humanidade. Ele é apresentado como o ideal inalcançável. Contudo, há uma diferença distinta entre um “sacramento” e um “ideal”, pois o primeiro é “uma experiência que envolve não só o homem, mas uma experiência na qual ele age em comunhão com Deus“, na qual ele se torna um parceiro do Espírito Santo enquanto permanece humano, com as suas fraquezas e defeitos [16].

A teoria da indissolubilidade do casamento tem um forte significado pedagógico. A motivação dada por Cristo é uma ordem. Aqueles que se comprometem com a aliança do matrimónio devem fazer tudo para não se separar, pois têm de agradecer a Deus pela sua unidade. Mas a motivação adicional: “Portanto, o que Deus uniu, que o homem não separe” (Mc 10:9; Mt 19:6) não significa uma aderência mágica. Em todo o mistério ou sacramento, excluindo o batismo, é necessário o exercício do livre-arbítrio do homem. A expressão “não separe” é uma exigência divina, assim como a que diz “não mate“. Mas o homem é livre e pode dissolver o seu casamento e matar o seu semelhante. Em ambos os casos, porém, ele comete um pecado grave [17].

A Igreja tem sido fiel, ao longo dos séculos, ao princípio mencionado por São Paulo, de que um segundo casamento é uma aberração do estatuto cristão. Neste sentido, a doutrina ortodoxa confirma não só a “indissolubilidade” do matrimónio, como, também, a sua singularidade. Todo matrimónio verdadeiro pode ser, singularmente, o “único”.

  1. DIVÓRCIO

O problema do divórcio é uma questão muito delicada, pois muitas vezes toca numa dolorosa realidade humana.

A tradição da Igreja dos primeiros séculos – que continua a ter autoridade para a Igreja Ortodoxa – dá ênfase a dois pontos, os quais encontram-se relacionados:

a) a “singularidade” do autêntico casamento cristão;

b) a perenidade da vida conjugal.

Podemos recordar aqui a analogia, feita por São Paulo, entre a unidade de Cristo e a sua Igreja e a unidade da noiva e o noivo. Essa analogia, que está na raiz do mistério, assume a unidade real e contínua do casal, o que exclui totalmente uma poligamia simultânea e vê um único casamento como o ideal.

O divórcio não cura o casamento doente: mata-o. Não é uma ação ou uma intervenção positiva. Trata-se de dissolver a “mini-Igreja” que se formou através da relação matrimonial [18]. A Sagrada Escritura atribui o divórcio à insensibilidade do homem [19]. Isso é visto como uma queda e um pecado. No entanto, a Igreja Ortodoxa pode permitir o divórcio e o novo casamento com base na interpretação do que o Senhor disse em Mt 19:9: “Digo-vos que quem se divorciar da sua esposa, exceto por infidelidade conjugal, e casar com outra mulher, comete adultério.” Segundo o Bispo Kallistos Ware, o divórcio é uma ação de “economia” e uma “expressão de compaixão” da Igreja para com o homem pecador. “Uma vez que Cristo, segundo o relato do Evangelho de Mateus, permitiu uma exceção à sua regra geral sobre a indissolubilidade do casamento, a Igreja Ortodoxa também está aberta a permitir uma exceção” [20].

Uma pergunta que podemos fazer-nos é se Cristo considerava o casamento como sendo indissolúvel. Precisamos ser muito claros quanto a isso: quando Cristo ensinou que o casamento não deve ser dissolvido, isso não significa que Ele estivesse a afirmar que tal não poderia vir a acontecer. A integridade da relação matrimonial pode ser maculada por comportamentos erróneos. Em outras palavras, é a ofensa que rompe o vínculo. O divórcio é, em última análise, o resultado dessa rutura. Esse é, também, o ensinamento dos Padres da Igreja Oriental, sendo que uma citação do testemunho de São Cirilo de Alexandria será suficiente para explicar aqui o nosso ponto de vista: “Não são as cartas de divórcio que dissolvem o casamento em relação a Deus, mas o comportamento erróneo” [21].

A violação de uma relação matrimonial é dividida em dois grupos:

  1. as resultantes de adultério (infidelidade e comportamento imoral);
  2. as provenientes da ausência de um dos parceiros (essa ausência deve, no entanto, apresentar certas particularidades).

Segundo o espírito da Ortodoxia, a unidade do casal não pode ser mantida somente em virtude da obrigação jurídica; a unidade formal deve ser coerente com uma sinfonia interna [22]. O problema surge quando já não é possível salvar nada dessa sinfonia, pois, “então, o vínculo que originalmente era considerado indissolúvel já está dissolvido e a lei nada pode oferecer para substituir a graça e não pode curar nem ressuscitar, nem dizer: ‘Levanta-te e vai'” [23].

A Igreja reconhece que há casos em que a vida matrimonial não possui conteúdo ou pode mesmo levar à perda da alma. São João Crisóstomo disse a esse respeito: “É melhor romper a aliança do que perder a alma” [24]. No entanto, a Igreja Ortodoxa vê o divórcio como uma tragédia devido à fraqueza humana e ao pecado.

  1. NOVO CASAMENTO

Apesar de a Igreja condenar o pecado, ela também deseja ser um auxílio para aqueles que sofrem, razão pela qual pode permitir um segundo casamento. Isso, certamente, acontece quando o casamento deixou de ser uma realidade. Um possível segundo matrimónio só é permitido, portanto, em razão da “fraqueza humana“. Como disse São Paulo, a respeito dos não casados e das viúvas: “Se não se podem conter, devem-se casar” (1Co 7:9). Tal é permitido como uma concessão pastoral no contexto da “economia”, diante da fraqueza humana e do mundo corrupto em que vivemos.

Em outras palavras, existe uma estreita relação, em todas as dimensões, entre o divórcio e a possibilidade de um novo casamento. É importante aqui explicar um elemento fundamental da doutrina da Igreja Ortodoxa, a saber: que a dissolução de uma relação matrimonial não concede ipso facto o direito de entrar noutro casamento. Se olharmos para o tempo da Igreja primitiva, a dos primeiros séculos, teremos que concordar que ela não tinha nenhuma autoridade jurídica em relação ao casamento e, portanto, não fez nenhuma declaração sobre a sua validade. São Basílio, o Grande, por exemplo, não se referiu a uma regra, mas sim a um costume, no que diz respeito a esse problema [25]. Ao referir-se à situação de um homem que tenha sido traído pela esposa, ele declarou que esse homem será digno de perdão se vier a casar-se novamente. É bom lembrar que a Igreja Ortodoxa sempre teve, em geral, um sentimento de relutância em relação aos segundos casamentos. Seria completamente errado afirmar que os cristãos Ortodoxos podem casar-se duas ou três vezes!

A lei canónica Ortodoxa pode permitir um segundo e até mesmo um terceiro casamento em “economia”, mas proíbe estritamente um quarto. Em teoria, o divórcio só é reconhecido em caso de adultério, mas, na prática, também é reconhecido à luz de outras razões. Há uma lista de causas de divórcio aceitáveis para a Igreja Ortodoxa. Na prática, os bispos aplicam, às vezes, a “economia” de forma liberal. A propósito, o divórcio e o novo casamento somente são permitidos no contexto da “economia”, ou seja, devido a um cuidado pastoral, por compreensão da fraqueza. Um segundo ou terceiro casamento será sempre um desvio do “casamento ideal e único“, mas, muitas vezes, uma nova oportunidade [26] para “corrigir um erro” [27].

  1. ECONOMIA

A questão surge aqui. O que é, exatamente, essa “economia” [28]? Em uma contribuição teológica e académica, o atual Patriarca Ecuménico Bartolomeu, ainda enquanto Metropolita de Filadélfia, explicou, de forma clara e concisa, o que significa esse termo ao sugerir que, geralmente, é aceite que a economia eclesiástica é uma imagem da economia divina, do amor e da bondade. Que a economia é tão antiga quanto a própria Igreja é evidente a partir de uma leitura do Novo Testamento. Isso é muito claro, por exemplo, em At 16:3, onde lemos: “e tomando-o, circuncidou-o, por causa dos judeus que estavam naqueles lugares; porque todos sabiam que o seu pai era grego.” No entanto, a economia na Igreja Ortodoxa nunca foi definida sistemática ou oficialmente. “Trata-se de uma característica, de um verdadeiro privilégio e de um precioso tesouro da Igreja” [29]. Nos encontros pan-Ortodoxos do século XX, houve tentativas de dar uma definição à economia, mas, no final, isso foi abandonado, “porque a economia é algo mais experienciado do que descrito e definido (…) na Igreja Ortodoxa, na qual é um privilégio característico e antigo” [30].

A questão, porém, permanece. O que é “economia”? Bem, de acordo com a lei canónica da Igreja Ortodoxa, economia é “a suspensão da aplicação absoluta e rigorosa dos cânones e regulamentos eclesiásticos no governo e na vida da Igreja, sem comprometer, subsequentemente, as limitações dogmáticas. A aplicação da economia somente pode ser feita pelas autoridades eclesiásticas oficiais e só é aplicável para um caso particular” [31]. Isso é permitido por razões excecionais e severas, mas não cria precedentes. A Igreja, que continua a estender a obra redentora de Cristo pelo mundo, determinou, com base nos mandamentos do Senhor, e dos Apóstolos, uma série de cânones. Através deles, a Igreja ajuda os fiéis a alcançar a salvação. Mas deve-se notar que essas regras não são aplicadas juridicamente, pois a Igreja tem sempre em mente o que o próprio Senhor disse: “O sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado” (Mc 2:27).

Um cânone é uma “regra” ou um “guia” para o culto, os sacramentos e o governo da Igreja. Há cânones determinados pelos Apóstolos, pelos Padres da Igreja, pelos Concílios locais e regionais e pelos Concílios gerais ou ecuménicos. Somente o bispo, como cabeça da Igreja local, pode aplicá-los, devendo fazê-lo de uma forma rigorosa (“akrivia“), ou flexível (“economia”), mas a “precisão” é a norma. Uma vez passada a circunstância particular – que exigia um juízo condescendente e apaziguador – a “akrivia” assume, mais uma vez, toda a sua força. Não pode ocorrer que a “economia”, necessária numa situação específica, venha a tornar-se um exemplo e que seja mantida, mais tarde, como regra [32]. A “economia” é, para a Igreja Ortodoxa, uma noção que não pode ser comparada à “dispensação” na Igreja Católica Romana. A dispensação é uma exceção antecipada, que prevê uma norma jurídica paralela ao regulamento oficial.

A economia é baseada no mandamento de Cristo aos seus Apóstolos: “Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, ficarão perdoados (Jo 20:22-23) e pode ser aplicada quando a experiência do casamento humano torna-se impossível, devido à morte espiritual do amor. É então que a Igreja – como Corpo de Cristo – com compreensão e compaixão e por preocupação pessoal, pode aplicar a “economia”, “aceitando o divórcio e não rejeitando os fiéis pecadores humanamente fracos, nem privando-os da misericórdia de Deus e de mais graça“. [33] É o objetivo preciso da economia que a pessoa fraca não seja irrevogavelmente banida da comunhão eclesiástica, segundo o exemplo de Cristo, que veio, afinal, para salvar os que estão perdidos.

  1. ACONSELHAMENTO PASTORAL

Antes que as autoridades eclesiásticas reconheçam o divórcio no contexto da economia, deve ser dado o aconselhamento pastoral em todos e cada um dos casos, através do qual tenta-se reconciliar os parceiros casados. Somente quando isso não for mais possível, deve ser pedida a permissão para o novo casamento, contanto que uma forma de penitência possa ser imposta, à luz de cada caso individual. Desse modo, a Igreja Ortodoxa deve ter um ponto de vista claro sobre esse problema e os sacerdotes devem estar motivados para assumir um papel mais importante na explicação, no aconselhamento e na cura psicológica [34].

a) Preparação para o casamento

No seu livro “Casamento: uma perspetiva Ortodoxa“, o Padre John Meyendorff aponta para o perigo dos casamentos forçados, onde o próprio casal não tem o desejo de um compromisso positivo. Pode ter sido desejado como um acontecimento social ou o que quer que seja. Esse, e muitos outros, são problemas que o padre precisa discutir quando se encontra com o casal com a finalidade de os auxiliar na preparação para o casamento. Ele tem a responsabilidade de os ajudar a compreender o sentido e o significado do matrimónio cristão. Essa reunião não pode, de modo algum, ser – ou aparentar ser – um assunto exclusivamente administrativo, no qual muitos documentos são recolhidos com a intenção de assegurar a aprovação do bispo para a celebração do casamento. O padre deve estar alerta para garantir que não sejam consagrados casamentos nos quais o casal não aceite o seu verdadeiro significado, o que, aliás, é um problema que se encontra, com frequência, nos casamentos mistos. Por outro lado, a responsabilidade pela preparação do casamento não cabe somente ao sacerdote, mas também aos professores, aos pais e, certamente, e em primeiro lugar, aos próprios jovens noivos [35].

Para que o casamento viva, e possivelmente também para sobreviver, há a necessidade de uma vida espiritual. Essa espiritualidade é vivida, primeiramente, na própria escola da Igreja, onde podemos participar, por excelência, dos dons da graça do Espírito Santo na celebração dos sacramentos. É aliás, num desses sacramentos que o homem e a mulher tornam-se um só, ou igreja-domiciliária”, pela graça do Espírito Santo. “Sob a perspetiva eclesiológica e espiritual que acabamos de referir, o casamento entra numa ação dinâmica” [36]. O caminho percorrido é determinado, em particular, pelos próprios casais e, no entanto, eles encontram-se num mundo “de surpresas e milagres“. O caminho torna-se cada vez mais estreito à medida que é percorrido lado a lado, com dois ou três filhos a acompanhar. O caminho da vida espiritual ortodoxa é “um caminho de liturgia, mística, ascese e escatologia” [37]. É a vida da – e na – Igreja, que dá ao casal e a toda a família uma outra dimensão, uma outra perspetiva da vida e dos problemas que terão de enfrentar.

É muito importante que a Igreja providencie a reflexão correta de tudo o que diz respeito ao matrimónio e à família, bem como do seu valor a partir da perspetiva da fé, especialmente para os jovens e futuros casais de noivos e os seus pais. Em muitas dioceses da Igreja Ortodoxa da Grécia, por exemplo, existem “escolas para os pais”, nas quais se dá uma atenção específica à preparação dos filhos para o matrimónio. Isso também é possível através de uma conversa sobre o tema [38].

[b…]

c) Abordagem pastoral do problema do divórcio

A comunidade eclesiástica precisa estar vigilante e dar atenção suficiente aos casais e famílias que tenham sido afetados e incapacitados pelo divórcio. O parceiro casado que foi abandonado pelo outro parceiro encontra-se numa situação de desânimo e solidão. O destino dos filhos é muitas vezes ainda pior. Devido à experiência pastoral, sabemos que a assistência social e psicológica são insuficientes. Eles precisam de ser fortalecidos através de uma abordagem “espiritual e pastoral”, a qual, espera-se, volte a dar sentido e significado às suas vidas.

A Igreja, como comunidade, pode continuar a envolvê-los nos encontros litúrgicos. É evidente que uma comissão de amor discreta [40] é reservada a cada cristão em relação àqueles que estão divorciados. Também isso é coerente com o que São João Crisóstomo chamou de “o sacramento do irmão”. É preciso, certamente, evitar julgar ou condenar o irmão ou a irmã.

  1. CONCLUSÃO

Pelo que foi dito, temos em mente que o casamento é um sacramento ou mistério, porque é uma experiência viva do Reino de Deus. É uma entrada para uma nova vida, um crescimento em comum no Espírito Santo. Essa nova vida é como um dom, não como uma obrigação. O homem é livre para nela entrar ou não por essa porta. Mas essa nova vida só terá sentido se ela realmente levar à entrada na vida sacramental da Igreja. O matrimónio atinge a sua perfeição quando o casal participa regularmente na Eucaristia, no Corpo de Cristo. Desse modo, o matrimónio ganha um caráter santificador. Essa santidade do matrimónio deve, porém, ser protegida por certos cânones, não porque seja esse o espírito da Igreja, mas para demonstrar o ideal para os cristãos. A doutrina cristã do matrimónio é uma “responsabilidade jubilosa” [41]. Ela demonstra o que significa ser verdadeiramente humano, pois é através do casamento que se recebe a alegria de dar a vida, à imagem do Criador.

Quanto à perspetiva ortodoxa acerca do delicado e problemático tema do divórcio e de um possível novo casamento, é preciso dizer que ela está impregnada de sabedoria, confirmando o valor fundamental do casamento cristão firme e único, o que não significa que essa firmeza deva ser vista, em todas as circunstâncias da vida, como a preservação absolutamente irrevogável de uma afirmação jurídica. A Igreja Ortodoxa não quer fechar, inexoravelmente, a porta da misericórdia, mas mantém-se firme no ensinamento do Novo Testamento [42].

Fonte em inglês; Traduçáo portuguesa: Skemmata. Redação final: Gabriela Mota

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NOTAS:

[1] D. Athenagoras Peckstadt é bispo assistente da Arquidiocese Ortodoxa da Bélgica e Exarca da Holanda e Luxemburgo (Patriarca Ecuménico de Constantinopla) tendo estudado teologia na Universidade Aristotélica de Salónica e no Instituto Ecuménico de Bossey, em Genebra.

[2] Em grego, o mistério tem o significado de sacramento.

[3] É bom lembrar aqui que, na história da criação, a monogamia é assumida como a norma.

[4] O apóstolo Paulo vê, portanto, o paralelo entre a relação conjugal do homem e da mulher e a unidade entre a noiva, a Igreja e o noivo, Cristo. Isso não é apenas um quadro descritivo, mas também uma explicação da unicidade real e essencial no sacramento do matrimónio. Ver  N. Matsoukas, Dogmatic and symbolic theology, Thessalonica, 1988, pp. 496-497 (em grego).

[5] G. Mantzaridis, Christian Ethics, Thessalonica, 1995, p. 321 (em grego).

[6] J. Meyendorff, Marriage: an orthodox perspective, Nova Iorque, 1975, p.21.

[7] A unidade física – na qual o apóstolo Paulo diz que eles são “templos do Espírito Santo – é muito mais do que o simples prazer ou um remédio para o impulso sexual” Veja Ign. Peckstadt, em Het huwelijk orthodox em Een open venster op de Orthodoxe Kerk (The orthodox marriage in an open window on the Orthodox Church), Averbode, 2005.

[8] Ch. Catzopoulos, The holy sacrament of marriage – mixed marriages, Atenas, 1990, p.39 (em grego). Ver também Ch. Vantsos, Marriage and her preparation from an orthodox pastoral view of an orthodox, Atenas, 1977, pp.83-99 (em grego).

[9] Ign. Peckstadt, Het orthodox huwelijk in Een open venster op de Orthodoxe Kerk, (The orthodox marriage in an open window on the Orthodox Church), Averbode, 2005.

[10] Discurso sobre o casamento. Ver P. Evdokimov, Le sacerdoce conjugal – essai de théologie orthodoxe du mariage, in Le mariage – églises en dialogue, (The conjugal priesthood – essay on the orthodox theology of marriage, in the marriage – churches and dialogue), Paris, 1966, p. 94.

[11] Homilies 20 on Ephesians; P.G., 62, 143.

[12] P. Evdokimov, Sacrement de l’amour – le mystère conjugal à la manière de la tradition orthodoxe, (Sacramento do amor – o mistério conjugal segundo a tradição ortodoxa), Paris, 1962, p. 170.

[13], P.G. 62, 387.

[14] P. Rodopoulos (Metropolita), Lições de direito canónico, Tessalónica, 1993, p. 216 (em grego).

[15] Santo Inácio de Antioquia disse, na sua carta a Policarpo: “Os homens e mulheres que se casarem, devem entrar na sua unidade com a aprovação do bispo”, ver Inácio de Antioquia, Policarpo de Esmirna, Cartas, em col. Fontes Chrétiennes, (Christian Sources) Paris, 1958, p. 177 (A Polycarpe V, 2).

[16] J. Meyendorff, Marriage: an orthodox perspective, New York, 1975, p. 21.

[17] N. Matsoukas, Dogmatic and symbolic theology, Thessalonica, 1988, p. 497 (in Greek).

[18] G. Patronos, Marriage in theology and in life, Athens, 1981, p.119 (in Greek).

[19] “Moses permitted you to divorce your wives because your hearts were hard. But it was not this way from the beginning” (Matt. 19, 8).

[20] T. Ware (Bishop Kallistos), L’Orthodoxie — l’Eglise des septs conciles, Paris 1997, pp. 380-381.

[21] P.G. 72, 380 D.

[22] Ver P. L’Huillier (Archbishop), Le divorce selon la théologie et le droit canonique de l’Eglise orthodoxe, in Messager de l’Exarchat du Patriarcat Russe en Europe occidentale (no 65), Paris, 1969, pp. 25-36.

[23] P. Evdokimov, Sacrement de l’amour — le mystère conjugal à la manière de la tradition orthodoxe, Paris, 1962, p. 264.

[24] P.G. 61, 155.

[25] P. L’Huillier (Archbishop), Les sources canoniques de saint Basile, in Messager de l’Exarchat du Patriarcat Russe en Europe occidentale (no 44), Paris, 1963, pp. 210-217.

[26] O Padre Meyendorff explicou, a esse respeito, que “a Igreja não ‘reconheceu’ nem ‘concedeu’ o divórcio. Ele é visto como um grande pecado, mas a Igreja nunca deixou de oferecer aos pecadores uma ‘nova oportunidade’, estando sempre preparada para recebê-los novamente, desde que fossem penitentes”. Ver J. Meyendorff, Marriage: an orthodox perspective, Nova Iorque, 1975, p. 64.

[27] Ign. Peckstadt, Het orthodox huwelijk in Een open venster op de Orthodoxe Kerk, (The orthodox marriage in an open window on the Orthodox Church), Averbode, 2005.

[28] Encontra-se o termo “economia” ou “oikonomia” – como entendido aqui – no Novo Testamento e nos textos dos Santos Padres e dos autores da Igreja. Ainda que não se encontre um escrito sistemático sobre esse tema por parte dos Santos Padres, o termo foi utilizado por eles, com frequência, no sentido de um desvio da precisão da regra. Ver P. Rodopoulos (Metropolita), Introdução aos temas do quinto Congresso Internacional da Sociedade de Direito das Igrejas Orientais – I. Oikonomia, II Casamentos mistos, in Estudos I – cânone pastoral, litúrgico e vários (em grego), Tessalónica, 1993, p.244. É um conceito teológico exclusivo da Igreja Ortodoxa.

[29] B. Archondonis (Ecumenical Patriarch), The problem of oikonomia today, in Kanon, Jahrbuch der Gesellschaft fur das Recht der Ostkirchen (Yearbook of the Society for the law of the Eastern Churches) Vienna, 1987, p. 42.

[30] Ibid., p.40.

[31] P. Rodopoulos (Metropolitan), Oikonomia nach orthodoxen Kirchenrecht, em Studies I (em grego), Thessaloniki, 1993, p. 231.

[32] P. Trembelas, Dogmatique de l’Eglise orthodox catholique (Dogmatics of the catholic orthodox Church, part III), deel III, Chevetogne 1968, p. 61.

[33] Ign. Peckstadt, Het orthodox huwelijk in Een open venster op de Orthodoxe Kerk, Averbode, 2005. Ver também: Ign. Peckstadt, De economia in de Orthodoxe Kerk, in 25 jaar Orthodoxe Communauteit Heilige Apostel Andreas Gent (1972-1997), Gent 1975, p. 65.

[34] J. Meyendorff, Marriage: an orthodox perspective, New York, 1975, p. 65.

[35] Ibid., p. 54-56.

[36] A. Stavropoulos, Concerning marriage and the family, in Snapshots and excursions on paths of pastoral service, parte 3, Atenas, 1985, p. 116 (em grego).

[37] Ibid., p. 117.

[38] Ibid., p.118.

[…]

[40] Ign. Peckstadt, Het orthodox huwelijk in Een open venster op de Orthodoxe Kerk, Averbode, 2005.

[41] J. Meyendorff, Marriage: an orthodox perspective, New York, 1975, p. 84.

[42] P. L’Huillier (Archbishop), Le divorce selon la théologie et le droit canonique de l’Eglise orthodox, in Messager de l’Exarchat du Patriarcat Russe en Europe occidentale (no 65), Paris, 1969, p. 36.

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