Quando o homem desperta para a realidade material de que é apenas “pó da terra” (Gn 2:7) e passa a contemplar a realidade espiritual, sente que as duas realidades existem de facto e o seu espírito as reconhece como tal. Rapidamente, então, depara-se com um paradoxo: o homem, como uma espécie única, é capaz de conhecer a realidade do mundo material com a ajuda do espírito, que não possui as características da realidade física, ou seja, não se pode revelar materialmente como um objeto, ser percebido através dos sentidos ou se manifestar como uma realidade para além do que é subjetivo. No entanto, apesar de o espírito ser ininteligível enquanto realidade material, através da sua essência invisível, ele é o critério de toda a realidade visível no mundo da matéria. Então, cada vez mais, o homem sente e descobre que o pensamento do espírito – apesar de intangível, invisível e incorpóreo – é, ainda assim, mais real do que qualquer realidade material, o que significa dizer que toda a realidade tem como base os pensamentos do espírito, que é, em si, incorpóreo. É aí que residem a primazia, a perplexidade e a majestade do espírito humano. O homem, então, desperto e guiado pelo seu espírito incorpóreo através dos mistérios do mundo material, passa a compreender, gradualmente, que o espírito é a sua maior e mais imediata realidade e, consequentemente, o seu maior valor. Em tal estado de espírito, o homem acaba por sentir a verdade irresistível das palavras do Salvador a respeito de a alma do homem ser mais real do que todo o mundo visível e mais valiosa do que tudo o que há no mundo material: “Pois que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua alma?” (Mt 16:26, Mc 8:36-37 e Lc 9:25). Em outras palavras: no mundo visível não existe valor equivalente ao da alma humana ou através do qual a alma possa ser avaliada e adquirida; a alma é o que há de mais valioso.
Na verdade, o homem fundamenta toda a sua vida visível, no tempo e no espaço, em invisibilidades, isto é, na alma, nos seus pensamentos e na sua consciência. No mundo da realidade material e da existência visível, o homem se orienta pelo seu pensamento. É através desse pensamento – invisível – que o homem pesa e avalia tudo o que o rodeia. É natural e lógico, então, que, através do pensamento, o homem se oriente no mundo da realidade e dos valores espirituais. Por meio do pensamento, o homem se une, não apenas ao mundo da realidade visível, material, mas também ao mundo da realidade espiritual. Até o mais radical epistemólogo não pode negar isso. Deve-se admitir que o espírito humano é um laboratório de maravilhas, no qual as impressões sensoriais são processadas em pensamentos de um modo incompreensível.
Um sério observador do mundo, quando dele se aproxima a partir de qualquer direção, seja da realidade material ou espiritual, deve sentir a presença dos mistérios infinitos em todos os fenómenos. Esse é o tributo que todo o pensador deve pagar ao mistério do mundo. Sem dúvida, uma orientação adequada neste mundo enigmático depende do espírito pelo qual o homem se guia ou, mais corretamente, da natureza do espírito. E o espírito do homem revela a sua natureza através da sua atividade no mundo físico. A partir dessa atividade emerge do espírito humano um anseio pela infinitude em todas as suas expressões: o conhecimento, a existência e a vida.
Ora, o espírito humano anseia, incansavelmente, pelo conhecimento, pela vida e pela existência infinita e tudo faz à procura de um único objetivo: superar a transitoriedade, a finitude e a limitação. Em última análise, em todas as culturas e civilizações, todos os tormentos do espírito humano se resumem ao seu grande esforço para superar a morte, isto é, para assegurar a imortalidade e a vida a qualquer custo.
No entanto, somos induzidos a uma pergunta: de onde provém esse anseio pela infinitude que existe no ser humano? O que impele o pensamento humano de problema em problema, de infinitude em infinitude? Se esse anseio pela imortalidade pode ser atribuído ao homem mais simples, o que dizer então dos célebres pensadores que o desenvolveram na resolução das problemáticas mais atordoantes? Tudo isto demonstra que o anseio pela infinitude pode ser encontrado na própria natureza do espírito humano. Faz parte da essência do conhecimento o anseio pela infinitude, o mesmo ocorrendo com os sentidos e a própria vida. Todo o espírito do homem – seja através do conhecimento, dos sentidos, da vontade e mesmo da própria vida – almeja ser infinito, ou seja, imortal. O anseio pelo infinitude e pela imortalidade é a mais antiga e metafísica “fome” do espírito humano. Foi ele que conduziu o espírito humano ao infinito através das mais diversas religiões, filosofias, ciências, esforços e proezas. Numa palavra, o espírito humano anseia pela infinitude, ou seja, a imortalidade a qualquer custo e de qualquer modo.
É óbvio que a natureza material não poderia ter dotado o homem desse anseio pela infinitude, porque ela própria é finita e não traz esse anseio em si mesma. É igualmente óbvio que nem mesmo o corpo humano poderia ter dotado o espírito humano com esse anseio, uma vez que ele próprio é finito. Permanece, então, como única resposta a hipótese de que o anseio humano pela infinitude, pela imortalidade, é encontrado na própria essência do espírito humano. Criado à imagem de Deus, o homem, na sua integralidade, vivencia esse anseio. Pois a semelhança a Deus é aquilo que, no interior de um ser humano, anseia pelas verdades infinitas de Deus em todas as realidades, ou seja, presente no espírito do homem, essa semelhança leva o homem a ansiar por Deus e a alcançar toda a Sua infinitude.
É, então, natural para a alma ansiar por Deus. Essa não é uma conclusão a priori, mas sim a posteriori, porque toda a experiência da raça humana é testemunha desse poderoso e misterioso anseio do espírito humano pela infinitude, pela imortalidade, pela vida eterna, seja neste mundo ou noutro. Se nos basearmos na experiência universal da raça humana e reduzirmos o homem aos seus elementos básicos, certamente encontraremos esse anseio pela imortalidade como sendo o elemento básico sobre o qual repousa a totalidade do homem e no qual ele ontologicamente consiste.
Original: Arquimandrita Justino Popovich – Homem e o Deus-Homem
Publicado por: Imprensa Sebastiana; Diocese da América Ocidental da Igreja Ortodoxa Sérvia
Série do Pensamento Contemporâneo Cristão, número 4. Primeira Edição
Tradução para Português: Paulo Ferreira. Redação final: Gabriela Mota.