Relatório do debate entre ortodoxos e batistas
realizado em Chisinau, República da Moldávia,
no dia 30 de setembro de 2010.
Entre a Escritura e a Tradição não há nenhum conflito ou contradição. A falsa oposição entre as duas apareceu no século XVI, quando o protestantismo proclamou o princípio Sola Scriptura (Só Escritura), ao dizer que a Bíblia é a única fonte da doutrina, suficiente para a salvação. O Concílio de Trento, organizado por uma denominação também afastada da verdade, ao desejar combater o princípio herético Sola Scriptura, disse que há duas fontes da doutrina: a Escritura e a Tradição, ambas inspiradas, necessárias para a salvação e com a mesma autoridade. Por vezes, os ortodoxos seguiram esse ensinamento romano-católico, mas, na verdade, ele não corresponde totalmente à perceção ortodoxa, sobretudo no que diz respeito à conexão entre a Escritura e a Tradição[1].
Os erros católico-romanos, baseados numa tradição perdida, que já não estava mais fundamentada na doutrina dos apóstolos, mas na autoridade (e até personalidade) do papa[2], gerou uma série de afastamentos da fé da igreja primitiva, o que levou a interpretações opostas nas comunidades protestantes.
Vejamos alguns exemplos em que os extremos levaram a outros extremos:
- os católicos romanos absolutizaram o papel da hierarquia, especialmente do papa, e os protestantes rejeitaram o sacerdócio sacramental;
- os católicos romanos exageraram o culto da Mãe de Deus[3] e os protestantes eliminaram-no;
- Roma começou a canonizar os supostos santos, que viveram um estilo perdido de vida (como Francisco de Assis) e os protestantes, por sua vez, rejeitaram o seu culto;
- os católicos romanos racionalizaram os sacramentos e os protestantes passaram a considerá-los simples símbolos;
- os católicos romanos distorceram o significado e a beleza do ícone, ao introduzir as estátuas e pinturas renascentistas e os protestantes rejeitaram o culto das imagens.
Sabemos, com certeza, que não foi por falta de argumentos bíblicos que os protestantes rejeitaram tudo isso (porque as especulações sobre a existência ou inexistência da base bíblica apareceram muito mais tarde), mas porque os extremos dos católicos romanos tinham-se tornado muito perturbadores.
O significado inicial do Sola Scriptura, tal como Lutero o entendeu[4], referia-se à rejeição das inovações católico-romanas – o próprio Lutero retirou da tradição católico-romana[5] as ideias de Agostinho (a predestinação, o ensino sobre o Filioque etc.) – os quais, na verdade, não correspondem às Escrituras. O próprio Lutero, por exemplo, reconhecia o batismo dos bebés, apesar de os neoprotestantes considerarem-no antibíblico. Foram os discípulos de Lutero e os neoprotestantes que deram um caráter exclusivo ao princípio Sola Scriptura, ao rejeitar qualquer ideia de tradição. Apesar disso, eles também têm a sua tradição[6]. Eles somente interpretam a Bíblia segundo a perspetiva estrita de alguns pontos de doutrina que nela não estão escritos, de alguns livros[7], catecismos ou revistas publicadas pela sua denominação ou da opinião de pessoas consideradas carismáticas. Dessa forma, o princípio da Sola Scriptura, como veremos, não funciona, pois os critérios de interpretação da Bíblia estão fora dela. Se a Bíblia pudesse ser interpretada somente através desse princípio, seria impossível a aparição de várias interpretações/denominações, todas afirmando estar fundamentadas na Sola Scriptura, mas, ao mesmo tempo, contradizendo-se.
Apesar de terem a sua própria tradição, os protestantes e os neoprotestantes não reconhecem a Santa Tradição, apresentando contra nós falsos argumentos, que não se referem à Tradição, mas a “tradições humanas”, como a elas se refere a Bíblia. Em três passagens da Escritura, onde a Tradição parece ser condenada, o Senhor refere-se claramente aos “ensinamentos dos homens” (Mt 15:2-6, Mc 7:3-13 e Cl 2:8).
Se os neoprotestantes preferem citar Mateus, passo a citar Mc 7:8: “Descurais o mandamento de Deus, para vos prenderdes à tradição dos homens”, ou seja, lavar os copos e jarros e muitos outros exemplos como estes. Aqui, podemos ver claramente não só a condenação de uma tradição, mas também o seu conteúdo: a lavagem de copos e jarros e outros hábitos são irrelevantes para a salvação. Mas, quando falamos sobre a Santa Tradição, referimo-nos a outra coisa – e quero que entendam claramente isso. Nós não consideramos parte da Tradição aquele elemento que contradiz a Revelação divina e a Escritura. Passamos a expor, agora, a visão ortodoxa.
A Escritura e a Tradição não podem ser vistas como duas fontes complementares de doutrina, mas como duas realidades que estão numa relação de interioridade mútua (cada uma contém a outra). Se fizermos uma analogia à Santíssima Trindade, podemos dizer que a Escritura e a Tradição são um só ser (esse ser é a Verdade única e imutável) e, ao mesmo tempo, são distintas. É por isso que a sua separação e contraposição podem ser comparadas com a separação e contraposição das Pessoas da Santíssima Trindade. Expandirei aqui a ideia e quero que entendam a analogia da Santíssima Trindade somente como uma comparação.
Como a Bíblia nos ensina, a nossa salvação, trazida por Cristo, foi realizada objetivamente pela Sua paixão, morte e ressurreição e, subjetivamente, pela nossa cooperação com Deus e a Igreja que Ele fez[8], não com base em ideias pessoais ou do grupo de alguém, mas com base na Sua Pessoa Divino-Humana (Mt 16:16 e I Tm 3:15-16). Cristo prometeu-nos que a Sua Igreja sempre existiria, por isso “nem as portas do inferno prevalecerão contra ela” (Mt 16:18). Ao subir aos céus, Ele prometeu que estaria connosco “até o fim do mundo” (Mt 16:16) e que o Espírito Santo seria enviado ao mundo, a fim de “nos levar a toda a verdade” (Mt 28:20). Esta verdade refere-se a Cristo e é o próprio Cristo (Jo 14:6), que “ontem, hoje e sempre é o mesmo” (Hb 13:8) e a nossa fé Nele é a que tem sido dada para sempre aos santos (Jd 1:3).
Tendo isso em conta, é evidente que a verdade da fé não pode ser uma no primeiro século, outra no século IV, outra no século XVI e ainda outra no século XXI. Ela deve ser a mesma até o fim do mundo. Quem admitir que a verdade pode ser mudada está afastado da Verdade, pois está a contrariar as Escrituras. É por isso que consideramos que a verdade deve ser a mesma em todos os tempos e lugares e a sua manutenção intacta é devida à presença eterna de Cristo e do Espírito Santo na Igreja do Deus Vivo, que é “o pilar e o sustentáculo da verdade” (1Tm 3:15). E se a verdade é uma só, também a Igreja só pode ser uma, porque uma cabeça não pode ter vários corpos. Uma cabeça tem um só corpo (Ef 1:22-23 e 4:3-6).
Deduzimos que a Igreja de Cristo e a sua doutrina devem existir a partir do momento da sua criação até o fim do mundo, sem interrupção. Então, somente pode pretender o nome de Igreja de Cristo aquela assembleia cristã que tem existido sem interrupção e consideramos que a essas condições somente a nossa igreja corresponde, a que se denomina Ortodoxa desde os primeiros séculos, sendo a mesma igreja dos apóstolos e dos primeiros cristãos. Foi nesta igreja que a Bíblia foi escrita e interpretada, juntamente com muitos outros ensinamentos, necessários para a salvação. Foi nela que o Espírito Santo guiou os santos bispos a estabelecerem corretamente o cânone bíblico (o número dos livros bíblicos, os seus autores e a sua ordem), rejeitando todos os escritos apócrifos heréticos. Isso aconteceu no século IV e até mais tarde[9], quando a Igreja tinha as mesmas cerimónias e a mesma organização da Igreja Ortodoxa de hoje. Não existem grandes diferenças entre a igreja do século IV e a nossa igreja atualmente.
Nessa igreja, a Bíblia era escrita, interpretada e transmitida adiante, da mesma forma como muitos outros ensinamentos baseados na mesma fé e pregação apostólicas. O princípio Sola Scriptura, naquele momento, não existia e não tinha como existir. Os Santos Padres, que estabeleceram o cânone bíblico, acabaram por aceitar e difundir muitos ensinamentos que não estavam claramente expressos na Bíblia, mas que foram retirados da Santa Tradição[10] e, mesmo assim, estão de acordo com a Bíblia: o texto e a cerimónia da Sagrada Eucaristia, que na Bíblia não são mencionados; a tripla imersão no Batismo[11], sugerida na Didaqué, escritura do primeiro século que, muitas vezes, era incluída no cânone bíblico (sabemos que os protestantes de hoje batizam com uma só imersão e seria interessante saber qual o fundamento para isso); a veneração das relíquias, claramente mencionada no século II, vinculada ao martírio de São Policarpo de Esmirna[12], discípulo direto de São João, o Teólogo; o sinal da cruz, confirmado no século II etc.[13]
Onde foram os evangélicos, então, buscar a Bíblia? A qual fundamento eles recorrem para dizer que um Evangelho pertence a Mateus ou a Marcos? De onde eles sabem que existem 27 livros autênticos no Novo Testamento e não menos ou mais? Nós dizemos que todas essas informações e, às vezes, até a maneira de interpretar as Escrituras, eles copiaram da Santa Tradição da nossa Igreja.
Eis que aqui surge uma outra pergunta. Porquê aproveitaram apenas uma parte da Tradição da Igreja e em que base e em quais critérios consideraram que, no estabelecimento do cânone bíblico, a Tradição da nossa Igreja foi correta e noutras coisas, a mesma Tradição da mesma Igreja errou? E se esta Igreja errou em alguma coisa, tendo “mancha ou ruga” (Ef 5:27), então ela não é mais igreja, então o que Cristo estabeleceu foi derrotado pelo poder do diabo e Cristo era um mentiroso, pois fez falsas profecias (Mt 16:18). E se o que Ele criou não foi destruído, então essa Igreja existiu e existe. Somente a ela temos de pertencer, porque todas as outras supostas igrejas são mentirosas.
Quero detalhar alguns aspetos sobre a relação Escritura-Tradição-Igreja. Depois da descida do Espírito Santo sobre os apóstolos (At 2:1-4), os cristãos perseveravam “na doutrina dos apóstolos, na comunhão, no partir do pão e nas orações” (At 2:42). A atividade de cada apóstolo não era limitada à pregação, porque os apóstolos não espalhavam Bíblias pelo mundo, como os evangélicos fazem, mas eles espalhavam a Igreja de Cristo, em toda a sua integralidade. “A sabedoria de Deus, de muitos tipos, foi dada a conhecer através da Igreja” (Ef 3:10), não através da Bíblia. E a Igreja incluiu e inclui o Batismo, a Eucaristia, o sacerdócio, a pregação e muitas outras coisas das quais os protestantes, muitas vezes, nem ouviram falar.
É claro que, na missão dos apóstolos, era dada uma grande ênfase à pregação da “palavra de Deus” e esta expressão refere-se, em primeiro lugar, à pregação oral (At 6:2,7; 11:1; 13:7,44; 16:32 e 18:11). “A palavra de Deus” não se referia à palavra escrita (a Bíblia), como os protestantes dizem, ao considerar apenas a Bíblia como a “palavra de Deus”. A Bíblia mostra claramente que a pregação oral era a palavra de Deus e ela “crescia e multiplicava-se” (At 12:210), ou seja, foi passada adiante em formas enriquecidas pela ação do Espírito Santo.
Outro aspeto extremamente importante e crucial na pregação da palavra de Deus consiste em que os apóstolos exortavam os seus discípulos a manterem e passarem adiante o que receberam do Senhor. Aqui, aparece a noção de “Tradição”, como revelação completa, dada à Igreja através dos apóstolos e transmitida adiante sem alterações. Vejamos alguns textos bíblicos que falam sobre esse significado da Tradição (parádosis) e da necessidade de guardá-la.
“Felicito-vos, irmãos, porque em tudo vos lembrais de mim e guardais as tradições, como vo-las transmiti. Com efeito, eu recebi do Senhor o que também vos transmiti” (1Co 11:2 e 23).
“Irmãos, estai firmes e conservai as tradições nas quais fostes instruídos por nós, seja por palavra ou por carta” (2Ts 2:15).
“Ordenamo-vos, irmãos, em nome do nosso Senhor Jesus Cristo, que vos aparteis de todo o irmão que leva uma vida desordenada e oposta à tradição que de nós recebestes” (2Ts 3:6).
“Essas coisas, que vós aprendestes, recebestes, ouvistes e vistes[14] em mim, façam; o Deus da paz estará convosco” (Flp 4:9). Não disse “o que lestes”!
Vemos, assim, que a transmissão da doutrina por meio oral e a sua retransmissão inalterada não eram apenas uma alternativa para a palavra escrita, mas, na maioria das vezes, a única maneira de pregar o Evangelho, porque:
- Cristo não escreveu nada (com exceção de algumas palavras na areia – Jo 8:8) e não ordenou aos apóstolos que escrevessem qualquer coisa.
- Assim como no Antigo Testamento, antes de Moisés, ninguém escreveu coisa alguma[15], também os santos apóstolos não escreveram nada durante quase vinte anos de pregação e São João escreveu os seus cinco livros no fim da sua vida, após sessenta anos de pregação oral, o que representa mais de uma geração. Aqui surge a pergunta: esse povo sabia que “Deus é amor” (I Jo 4:8)? A Epístola de São João ainda não estava escrita.
- Por causa de alguns problemas concretos de algumas comunidades, mas sobretudo por causa das heresias daquele tempo, os apóstolos escreveram apenas uma parte da doutrina, sem dizer ou deixar claro que o que eles escreveram continha tudo, mas pelo contrário, claramente mostraram que a atividade e, especialmente, a doutrina de Jesus, diretamente ou dada através dos apóstolos, era muito mais vasta, que “nem mesmo o próprio mundo poderia conter os livros que deveriam ser escritos” (Jo 21:25).
Em At 20:35, São Paulo, que não conheceu diretamente Cristo, apresentou um ensinamento que não aparece em nenhum dos quatro Evangelhos: ”Há mais felicidade em dar do que em receber”. Mas o que chama a atenção é que, antes disso, em At 20:31, São Paulo disse que, durante três anos, nunca parou, dia e noite, de exortar os seus apóstolos de Éfeso, mas não encontramos na Bíblia o conteúdo dessas pregações sistemáticas. E se essas pregações continham centenas de ensinamentos que vieram diretamente de Jesus, por qual razão não estão escritos no Evangelho, como o versículo acima?
Este caso não é o único, porque também não temos, na Bíblia, o conteúdo da pregação realizada durante um ano e meio em Corinto (At 18:11), que não é o mesmo contido nas duas epístolas aos Coríntios que temos. Certamente, São Paulo disse aos coríntios muito mais sobre a Eucaristia do que ele viria a dizer depois, nos versículos do capítulo 11, da primeira epístola.
Podemos pensar o mesmo sobre a celebração do domingo, sobre o qual, nas epístolas, ele fala apenas um pouco (1Co 16:2).
1. Além disso, os apóstolos preferiam falar com os seus discípulos diretamente, constituindo-se as epístolas apenas numa alternativa para os casos em que a reunião e a conversa direta não eram possíveis. Vejamos apenas dois exemplos, ambos datados do final do século apostólico, a partir dos quais concluímos que os apóstolos, mesmo naquela época, preferiam a palavra oral à escrita:
“Apesar de ter mais coisas que vos escrever, não o quis fazer com papel e tinta, mas espero estar entre vós e conversar de viva voz, para que a vossa alegria seja perfeita” (2Jo 1:12). E se a alegria não era completa, também a graça não era completa, segundo São Paulo.
“Tinha muitas coisas para te escrever, mas não quero fazê-lo com tinta e pena. Espero ir ver-te em breve e então falaremos de viva voz (3Jo 1:13-14).
2. Os apóstolos não podiam pretender que os primeiros cristãos tivessem ou lessem a Bíblia, pois isto era tecnicamente impossível. Foi apenas nos séculos II e III que as igrejas das grandes cidades começaram a recolher os livros do Novo Testamento, adotando também a tradução grega do Antigo Testamento (Septuaginta)[16], mas esse processo de colheita era muito difícil, por causa do grande custo dos pergaminhos ou do papiro e das grandes distâncias entre as igrejas que tinham um certo livro herdado dos apóstolos[17]. A possibilidade de algumas pessoas terem uma parte dos livros bíblicos era extremamente reduzida (além do facto de a maioria não saber ler). Se aceitarmos a conceção errada dos protestantes, podemos concluir que os primeiros cristãos não podiam ser salvos, já que não liam, nem estudavam a Bíblia. E se foi assim que aconteceu nos primeiros séculos e mais tarde com a Bíblia, eis que surge uma pergunta: como e de que forma os cristãos recebiam a palavra salvadora? A resposta é muito simples: na Igreja, onde os bispos ordenados e ajudados pelo Espirito Santo (At 20:28) passavam, de geração em geração, o “tesouro” recebido dos apóstolos[18] (2 Tm 1:13-14).
Esta sucessão apostólica incluía o direito de realizar a Eucaristia e o direito de pregar o Evangelho, realidades que nem na Igreja primitiva, nem mesmo depois, foram separadas. O apóstolo São Policarpo de Esmirna, discípulo do apóstolo São João, citado por São Irineu de Lião, disse: “A nossa fé está de acordo com a Eucaristia”. Duas gerações depois de São João, a fé e a Eucaristia estavam unidas. É assim que o são hoje também, na nossa Igreja.
Não falei sobre a sucessão apostólica ao acaso, porque, na Igreja Ortodoxa, esta sucessão pode ser vista em toda a parte e permanentemente. Lógica e teologicamente, está claro que a quebra desta sucessão sacramental e doutrinária significa a separação da Igreja Apostólica, cuja Cabeça é Cristo. Ficaríamos felizes em ver esta sucessão também no protestantismo, mas…não há hipótese.
Ao enfatizar o papel da sucessão sacramental, não quero dizer que os leigos não conheciam a “palavra de Deus”, mas que a Bíblia era lida e pregada somente na Igreja. A Igreja é a comunhão de cristãos, reunidos em torno da Eucaristia e guiados pelo Espírito Santo, mas também o lugar concreto onde esses livros, que nem todos tinham, mas que estavam postos a disposição de todos, estavam guardados. O mito que diz que a Igreja teria proibido que os leigos lessem a Bíblia é uma grande mentira e somente possuía alguma base para os católicos romanos, mas não para os ortodoxos. Os protestantes também desinformam com outro mito: que a Igreja teria proibido a tradução da Bíblia para os outros povos, mas isso também não é valido para o Oriente Ortodoxo, onde, no século II, havia a tradução síria, nos séculos IV e V, a tradução gótica, no século IX, a tradução eslava e no século XV, a tradução romena. Quando Lutero apareceu na face da Terra, todos os povos ortodoxos de relevo tinham a Bíblia traduzida em suas respetivas línguas[19].
Farei algumas especificações sobre a natureza e o conteúdo da Tradição. Ao falar da Santa Tradição, entendemos a revelação completa, dada à Igreja, através dos apóstolos e passada adiante inalterada. Então, a Tradição não é um conjunto de ensinamentos ou costumes, mas “a respiração do Espírito Santo na Igreja”, presente na sua doutrina, na oração e na vivência dos seus membros. Já argumentámos que a Bíblia é apenas uma parte dessa revelação e a sua importância e autoridade não são devidas ao seu conteúdo exclusivo (ao contrário do que dizem os evangélicos, que a Bíblia contém tudo), mas ao facto de a Bíblia ser aquela parte da revelação que foi escrita diretamente pelos apóstolos, testemunhas oculares e auditivas do Senhor, e ser a base através da qual todos os outros elementos da Tradição podem ser certificados[20]. É por isso que a Bíblia tem autoridade: por ser uma fonte primária, não porque conteria tudo e fora dela não haveria nada.
Então, a Bíblia não é e não pode ser considerada autossuficiente, ou seja, separada da memória viva da Igreja, que é a Tradição. Retirar a Bíblia do contexto da Tradição da Igreja é como retirar um versículo do contexto de um livro bíblico. Assim como separar o versículo de um contexto pode levar à perdição, também separar a Bíblia da Tradição leva à perdição. Então, a Bíblia, como ela mesma diz, somente pode ser interpretada através da Tradição. Vejamos alguns trechos bíblicos a esse respeito:
“Nenhuma profecia da Escritura é de particular interpretação. Porque a profecia nunca foi produzida por vontade de homem algum, mas os homens santos falaram de parte de Deus conforme eram movidos pelo Espirito Santo” (2Pe 1:20-21).
Então, a Bíblia não pode ser interpretada através dela mesma ou em particular, como os protestantes dizem, mas a sua interpretação somente pode ser feita por “homens santos, guiados pelo Espírito Santo”. Para nós, eles são os Santos Padres, que os protestantes, muitas vezes, copiam, sem terem a coragem e a sinceridade de dizer que certos ensinos pertencem, por exemplo, a São João Crisóstomo ou a São Basílio Magno, ou melhor dizendo, ao Espírito santo, que falou através deles, devido à sucessão herdada dos apóstolos, mas também devido à sua santidade.
O eunuco da Etiópia também reconheceu que não podia compreender corretamente o texto da Escritura sem um guia (At 8:31), especialmente porque, na Bíblia, há “muitas coisas difíceis de entender, que os ignorantes e instáveis distorcem, para a sua própria perdição” (2Pe 3:16). A Tradição da Igreja não somente nos deu a Bíblia, mas também a chave do seu significado, sem a qual é impossível não errar, acarretando a perda da alma.
A Santa Tradição possui os seguintes elementos básicos:
- A Bíblia, elemento infalível e dotado da máxima autoridade, com base na qual as outras fontes são verificadas;
- Os antigos símbolos de fé e confissões[21], incluindo os dos mártires (Mt 10:19-20). Cristo disse que, na hora do martírio, não seriam os cristãos, mas o Espírito Santo que falaria através deles. Isto significa que eles estariam num estado de revelaçã E se os apóstolos estiveram nesse estado e são obedecidos, também os mártires devem sê-lo;
- As decisões canónicas e dogmáticas dos Concílios Locais e Ecuménicos;
- Os escritos dos Santos Padres, universalmente reconhecidos pela Igreja (por meio do princípio “consensum patrum”, o que significa dizer, os escritos que não contradizem a Escritura e não se contradizem entre si, mas são baseados no consenso teológico, como obra do Espírito Santo, que falou através deles, com palavras diferentes, mas da mesma forma).
- Os vestígios litúrgicos, tais como os ícones[22], a hinografia, etc. Na Igreja primitiva, existia uma definição simples para os ícones: ”A Bíblia dos analfabetos”.
O critério com base no qual os elementos 2, 3, 4 e 5 são aceites ou rejeitados na Santa Tradição é o mesmo critério com base no qual os livros bíblicos foram aceites e pregados. Este critério foi formulado no século IV por São Vicente de Lérins “A verdadeira Tradição é o que todas as pessoas acreditaram sempre e em todos os lugares”. A ação do Espírito Santo consiste nesta concordância universal no espaço e no tempo, que faz da Tradição uma espécie de filtro, que somente aceita o que é útil e em concordância com o ensinamento oral e escrito herdado de Cristo e dos apóstolos, rejeitando todos os escritos contrários a esses ensinamentos.
Essa Revelação não é somente informação. Assim como a Bíblia não é somente informação, também a Tradição não é somente informação, mas também o espírito (ou seja, a ação viva do Espirito Santo na Igreja)[23]. O espirito da Tradição precede e dá valor à informação. Através da Tradição, é-nos transmitido o espirito apostólico da leitura e interpretação da Bíblia e, apenas depois, aparece a informação (o conteúdo dessas interpretações). Primeiro, foi transmitido o espírito da compreensão e formulação dos dogmas cristãos e, apenas depois, encontramos o conteúdo desses dogmas formulados na Tradição[24]. Em conclusão, a Igreja poderá formular outros dogmas também, se for preciso. É o espirito de compreensão dos dogmas que vai nos manter longe das formulações erradas e contraditórias.
Os católicos romanos e, sobretudo, os protestantes, não tendo isso em conta, não foram e nem hoje são capazes de operar conforme a informação dos dogmas, porque não possuem mais o espirito da Tradição Dogmática. O mesmo ocorre com a Tradição Litúrgica. O espírito e o modelo da oração foram transmitidos pelos apóstolos aos seus discípulos e gravitavam em torno da Eucaristia. Muito antes da oficialização do cristianismo como religião (313), as orações e as práticas litúrgicas dos cristãos eram semelhantes e, por vezes, idênticas, como texto e forma, às que temos hoje, mesmo sem existirem na Bíblia. Tudo isso demonstra, uma vez mais, a ação do Espirito Santo na Igreja, não somente através da letra da Bíblia, mas também através da letra e espírito da Tradição da nossa Igreja Una, Santa, Universal (Cathólica) e Apostólica.
Tradução do romeno: Ioana Andreea Lazăr
Redação final: Gabriela Mota
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Notas:
[1] Assumimos que houve um tempo em que os ortodoxos utilizavam os argumentos católicos na luta contra os protestantes e os argumentos protestantes na luta contra os católicos, mas essa perspetiva está errada e não leva a nada.
[2] O papa Pio IX disse, no Concílio Vaticano I: “La traditione sono io” (Eu sou a Tradição) e, aquando da intervenção do bispo de Bolonha: “Io sono la Chiesa” (Eu sou a Igreja).
[3] Mesmo que as heresias mariológicas tenham sido oficializadas apenas no século XIX, os católicos romanos começaram, mesmo antes da Reforma, a sustentar que a Mãe de Deus havia nascido do Espírito Santo (como Cristo), que seria corredentora da humanidade e que teria sido concebida sem o pecado original. Todos esses ensinamentos estão errados e foram rejeitados, não somente pelos protestantes, mas também pelos ortodoxos.
[4] Lembremos que Martinho Lutero considerou-se, durante toda a sua vida, membro da “Igreja Católica”, mesmo após ter sido excluído dela e condenado à fogueira, conseguindo ser salvo, apenas, graças à intercessão de personalidades políticas da época.
[5] Trata-se, sobretudo, de um abuso da filosofia aristotélica pela escolástica tomista. Para tanto, ver a Suma Teológica de Tomás de Aquino (século XIII), que está repleta de inovações sem nenhum fundamento bíblico.
[6] Diversos protestantes germânicos de renome como, por exemplo, Oscar Cullman, R. Ruckert e Ernst Kinder, chegaram à conclusão de que a Igreja não pode existir sem a Tradição.
[7] Por exemplo: “A confissão de Fé Batista de Londres, 1689”.
[8] Tal como dizia São Cipriano de Cartago, um grande padre da Igreja do século III: “Fora da Igreja não há salvação” (Extra ecclesiam nulla salus).
[9] Segundo o Cânone Apostólico 85 do século IV; o Cânone 60 do Concílio de Laodiceea de 343; o Cânone 24 do IV Concílio de Cartago de 419; a Epístola festiva do ano 367, de São Atanásio Magno; o Cânone I, de São Gregório, o Teólogo, do ano 390 e a Carta para Seleuco, de São Anfilóquio de Icónio, do ano 394. É digno de mencionar que, nessas escrituras, as listas dos livros canónicos do Antigo e Novo Testamento não são idênticas e a forma definitiva do Cânone, tal como a temos hoje, vem apenas do século IV. A discordância entre as listas dos livros é devida ao facto de que, em certas regiões, alguns livros não podiam ser recebidos por culpa de algumas heresias (seja por motivos pastorais ou apologéticos), mas também porque alguns desses livros poderiam nem ser conhecidos.
[10] Segundo São Basílio Magno – “Sobre o Espírito Santo”, capítulos 27 e 28 e Cânones 91 e 92.
[11] Segundo o Cânone Apostólico 50, se algum bispo ou padre batizar com uma só imersão, que seja excluído e o batismo não terá validade. Assim como diz a Didaqué, no seu capítulo VII, mesmo se, em caso de emergência, o batismo for feito pelo simples derramamento de água, isso deve ser feito, também, três vezes. Os católicos romanos não respeitam mais essa prática apostólica e batizam com salpicos, sendo que os neoprotestantes, por sua vez, batizam com uma só imersão. Por isso, a Igreja Ortodoxa não pode reconhecer como válido o batismo dessas confissões, sobretudo porque, também o ensinamento sobre a Santa Trindade, em nome de quem o batismo é feito, é desnaturado por causa do Filioque.
[12] Segundo a “Introdução aos Atos dos Mártires” (PSB 11, pp. 6 a 14).
[13] São Hipólito, o Romano – “A Tradição Apostólica”, capítulo 43. Este texto vem do ano 215, mas reflete a Tradição litúrgica do século II, dizendo sobre o sinal da cruz: “Esforça-te sempre para benzer com humildade a tua fronte com o sinal da cruz. Pois ele é o sinal da paixão (de Cristo) dado contra o diabo, devendo ser feito com fé, sem vaidade, para que, através do conhecimento, funcione como um escudo. Pois o inimigo, ao ver a força do Espírito que sai do coração como um banho de luz, começa a correr hesitante quando não lhe cedes e assim tu te animas. Esse sinal foi, também, a prefiguração da ovelha de Moisés, trazida como sacrifício de Páscoa e cujo sangue salpicou a moldura e foi posto sobre as ombreiras da porta, assinalando o que há agora dentro de nós – a fé: a ovelha perfeita. Ao benzermo-nos com a mão à frente dos olhos, afastamos aquele que tenta fazer com que nos percamos”. Podemos ver, claramente, como esse ensinamento é semelhante ao dos ortodoxos de hoje, mesmo que, naquela época, os cristãos benzessem-se somente na fronte com o sinal da cruz e não da forma como o fazemos hoje.
[14] Não disse “o que lestes”.
[15] Sem dúvida, também existiu uma Tradição no Antigo Testamento, devido à “Igreja da Lei Antiga” e essa Tradição não se limitou somente à época anterior a Moisés, subsistindo posteriormente. Também no Antigo Testamento havia ensinamentos que não estavam escritos, mas que eram transmitidos oralmente, os quais chegaram até o século I. São Paulo, por exemplo, escreveu que os homens que se opuseram a Moisés (Ex 7:11) foram dois e os seus nomes eram Janes e Jambres (2Tm 3:8), mas não encontramos essa informação no Antigo Testamento, tendo chegado até São Paulo através da Tradição.
[16] A tradução, em grego, do Antigo Testamento, feita na época de Ptolomeu II (séc. III a.C.), em Alexandria, Egito, por cerca de 70 a 72 anciãos (de onde vem o nome de Septuaginta), foi, e é considerada até hoje, pelos ortodoxos, superior ao texto massorético (hebraico), que sofreu diversas modificações, mesmo nos séculos VIII a X d.C. É digno mencionar que o próprio Senhor Jesus Cristo fez referência aos textos da Septuaginta (Mt 4;4) e não aos textos massoréticos.
[17] Alguns padres da Igreja Primitiva, discípulos diretos dos Apóstolos, ainda que tenham escrito muito, fizeram referência a poucos livros bíblicos e quase nunca a outros autores (Clemente, o Romano, referiu-se a oito livros, Inácio de Antioquia, a sete e Policarpo de Esmirna, a quinze livros), apresentando-os como ensinamentos que também lhes pertenciam, mas não com o sentido de autoridade, da qual eles estavam separados. As poucas referências aos textos bíblicos e a concordância surpreendente com o espírito da Bíblia confirmam a visão ortodoxa da Santa Tradição.
[18] Esse “tesouro era dado, em primeiro lugar, por via oral e, segundo o caso, de forma escrita”.
[19] Em geral, os neoprotestantes deveriam corrigir as suas acusações contra nós, porque muitas dentre elas referem-se, exclusivamente, aos católicos romanos, não aos ortodoxos.
[20] O teólogo romeno Dumitru Staniloae disse que “A Escritura nasceu na Igreja e para o seu uso” e é uma fixação em escrito da Tradição Apostólica, que é a Revelação plena dada à Igreja. A Igreja surgiu ao mesmo tempo que a Tradição e a Escritura, sendo que esta desempenha o papel de um resumo da Tradição, garantida pela Igreja, como “o pilar e o sustentáculo da verdade” (1Tm 3:15).
[21] Sabemos que o Espírito Santo inspirou os escritores bíblicos, mas que o mesmo Espírito Santo falou, também, pela boca dos mártires que sofreram por Cristo, assim como diz, claramente, o texto de Mateus 10:19-20. Nesse caso, quem tem legitimidade para dizer que a Bíblia deve ser aceite e os testemunhos desses mártires não? É bom saber que esses testemunhos contêm ensinamentos dogmáticos e litúrgicos muito importantes, que são rejeitados pelos protestantes, mesmo que pareçam ser inspirados pelo Espírito Santo.
[22] Na Tradição da Igreja, muitas vezes, foi dito que os ícones são “A Bíblia em imagens” ou “A Bíblia para os analfabetos”. Talvez seja por isso que os neoprotestantes, quando editam Bíblias para as crianças ou outros livros de ensinamentos, usam imagens para representar Cristo e os vários Santos do Antigo e do Novo Testamento.
[23] Essa ação do Espírito Santo na Igreja deve ser compreendida como um carisma dado à Igreja (e não a certas pessoas individuais), mas também como uma vivência espiritual daqueles que, através de uma vida pura, guardam e multiplicam os presentes do Espírito Santo.
[24] Os diferentes comentários dos Santos Padres e dos escritores da Igreja.