Como nós, ortodoxos, adotamos, fácil e indiscriminadamente, a linguagem da teologia ocidental! Sim, é sempre uma grande tentação, para aqueles que se converteram à Ortodoxia, vindos de denominações cristãs do Ocidente, trazer consigo a herança das suas crenças anteriores, em vez de abraçar a Ortodoxia como algo totalmente diferente do Cristianismo que deixaram para trás. Pois, mesmo que possam ver a cristandade ocidental de hoje como um alienígena em relação à Igreja dos Padres, eles ainda são, muitas vezes, relutantes em aceitar que nem tudo o que havia no Ocidente, anteriormente ao Cisma, é parte integrante da Ortodoxia.
Essa influência da teologia ocidental pode ser encontrada não somente entre os ortodoxos convertidos no Ocidente, mas também entre aqueles que foram educados na fé ortodoxa, em países tradicionalmente ortodoxos como a Grécia e a Rússia. Isso ocorre, muitas vezes, porque nós ortodoxos somos, infelizmente, demasiado ingénuos, ao considerar que as opiniões fundamentalistas entre os cristãos ocidentais devem ser, também, aquelas mais “corretas” de um ponto de vista ortodoxo. Na realidade, isso é, raramente (ou mesmo nunca) a verdade.
As heresias tendem a encontrar-se, sempre, em polos opostos. Não é incomum que uma heresia surja como uma reação a outra. Tanto é que, enquanto uns reivindicaram a defesa da heresia de que Cristo não é Deus, outros, para contestá-los, defendeu a heresia de que Ele não é homem. Uma heresia condena a veneração da Virgem Maria como Mãe de Deus, outra faz-lhe livre da queda por uma imaculada conceição. Uns alegam que o homem é salvo apenas pela graça, outros que é salvo apenas pelas obras. Tais extremos não são abraçados pela Ortodoxia.
A verdadeira Ortodoxia tende a ser o meio-termo entre os dois extremos. Isso vale, também, para a doutrina do “pecado original”. “Mas, espera!”, vem, então, um protesto: “A Igreja Ortodoxa não acredita no pecado original!” Eu hesitaria em dizer isso, ao menos sem uma explicação mais séria. Prefiro dizer que a Igreja Ortodoxa acredita no “pecado ancestral” (πρωπατορικό ἁμάρτημα).
Mas isso é uma questão, meramente, semântica? De forma alguma! Aquele que diz “pecado original” é obrigado a valer-se da doutrina exposta por Agostinho e, desde então, pela Igreja Latina, o que não é o ensino dos Padres da Igreja Ortodoxa Oriental.
O que, então, pretendo aqui esclarecer é que a compreensão dos ortodoxos acerca do pecado ancestral é muito distante da opinião de Agostinho e que, apesar do facto de a doutrina latina sobre o pecado original nunca ter sido formalmente condenada como heresia no Oriente, ela não pertence, no entanto, à Igreja Ortodoxa.
Agostinho e Pelágio
A doutrina de Agostinho sobre o pecado original nasceu da tentativa de combater a heresia do pelagianismo. A controvérsia começou em Roma, quando o monge britânico, Pelágio, opôs-se à oração de Agostinho: “Concede o que tu ordenas e ordena o que Tu desejas”. Pelágio opunha-se à ideia de que o dom da graça divina seria necessário para realizarmos a vontade de Deus. Ele acreditava que, ao sermos todos responsáveis por obedecer aos mandamentos de Deus, então, todos nós, também, teríamos a capacidade de o fazer, sem o auxílio divino. Passou, então, a negar a doutrina do pecado ancestral, ao argumentar que as consequências do pecado de Adão não foram transmitidas para o resto da humanidade, de forma que o seu pecado teria afetado unicamente a si próprio e, assim, todos os homens, ao nascerem, encontrar-se-iam no mesmo estado que o de Adão antes da queda.
Agostinho tinha uma visão totalmente diferente da queda e argumentava que a humanidade, desde então, tornou-se totalmente pecaminosa e incapaz de fazer o bem. Ele acreditava que o estado de pecado original deixou-nos numa tal condição que não somos capazes de abstermo-nos do pecado. A “imagem de Deus” no homem (ou seja, a livre vontade) foi destruída pela queda. Assim, ainda que possamos escolher fazer o bem, o nosso pervertido impulso para o mal corrompe a nossa livre vontade e obriga-nos a fazer o mal. Portanto, para Agostinho, somos totalmente dependentes da graça.
Essa perspetiva fez com que Agostinho construísse a sua sombria visão sobre a condição humana, de modo a defender que os efeitos do pecado original estabeleceram-se, sim, em todos os descendentes de Adão (em oposição ao pensamento de Pelágio) e que cada pessoa, desde então, é culpada do pecado original, desde o seu nascimento (a culpa original). Desse modo, consoante Agostinho, as crianças são culpadas do pecado e, portanto, as que morrem antes do Batismo (o qual, segundo ele, retira a culpa do pecado original) são condenadas à perdição e não podem ser salvas. Como se isso não bastasse, Agostinho formulou a doutrina da predestinação, ou seja, Deus predestinou quem será salvo e quem não o será …
O facto é que a doutrina de Agostinho prevaleceu e Pelágio foi condenado como herege, por Roma, no Concílio de Cartago, em 418. Então, ao que parece, as opiniões de Pelágio foram vistas como mais repreensíveis à Igreja latina do que a idéia da predestinação e de bebés a arder no inferno – pontos de vista que a Igreja latina não somente estava disposta a tolerar, como, também, a defender como uma doutrina ortodoxa!
São João Crisóstomo
Parecia, então, não haver, um meio termo no Ocidente. Contudo, no Oriente, uma visão diferente foi expressa pelo contemporâneo de Agostinho, João Crisóstomo.
A disputa entre Agostinho e Pelágio não tinha atingido o Oriente e, assim, Crisóstomo não dirigiu as suas atenções para as acirradas disputas e polémicas ocidentais. Se tivesse participado da disputa entre Agostinho e Pelágio, talvez a sua doutrina sobre o pecado ancestral pudesse ter prevalecido sobre as deles. Por outro lado, ao considerarmos que a única preocupação da Igreja Latina parece ter sido a condenação do pelagianismo, é mais provável que Crisóstomo fosse condenado como um “semipelagiano”. Seja como for, a sua visão sobre o assunto nunca recebeu a devida atenção e a disputa, no Ocidente, acabou por ter, como resultado, a vitória da doutrina do ‘pecado original’, defendida por Agostinho e considerada, então, a única resposta contra a heresia do pelagianismo.
Embora afirmasse que todos os seres humanos são feitos à imagem de Deus, Crisóstomo acreditava que o pecado ancestral legou, sim, a corruptibilidade e a morte, não somente para Adão, mas, também, para todos os seus descendentes, enfraquecendo, assim, a sua capacidade de crescer à semelhança de Deus; contudo, tal mácula nunca destruiu a imagem de Deus (livre vontade). Este santo foi uma voz importante entre os escritores patrísticos gregos, os quais interpretavam a queda como “uma herança, essencialmente, da mortalidade, em vez de ser um pecado, uma vez que este dá-se, apenas, como uma consequência da mortalidade”.
A posição de Crisóstomo é a mesma de Santo Atanásio, o Grande, e São Cirilo de Alexandria, os quais também afirmavam não sermos culpados do pecado de Adão e que, embora tenhamos herdado uma natureza corrompida, o nosso livre arbítrio permanece intacto. Essa interpretação patrística grega está fundada no texto de Romanos 5:12: “Portanto, como por um homem entrou o pecado no mundo e, pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os homens, por isso, todos pecaram.”
John Meyendorff explicou como a tradução deficiente do texto pode ter contribuído para uma diferença tão gritante na interpretação latina do pecado ancestral: “Nesta passagem, há um grande problema de tradução. As últimas quatro palavras gregas foram traduzidas, em latim, como em quo omnes peccaverunt (“em quem – ou seja, em Adão – todos os homens pecaram”) e esta tradução foi usada, no Ocidente, para justificar a culpa, herdada de Adão, a qual foi transmitida aos seus descendentes. Mas tal significado não pode ser inferido do original grego.”
São Cirilo de Alexandria explicou a passagem desta forma: “Como muitos tornaram-se pecadores por causa de Adão, como poderíamos nós, que não éramos ainda nascidos, ser condenados com ele, já que Deus disse: “Nem os pais devem ser condenados à morte por causa dos filhos, nem os filhos, em razão dos seus pais, mas a alma que pecar, essa morrerá” (Dt 24:18)? Ora, tornamo-nos pecadores, através da desobediência de Adão, da seguinte maneira: ele foi criado para a incorruptibilidade e a vida e o modo de existência que tinha, no jardim das delícias, era apropriado para a santidade. A sua mente estava, sempre, a ver Deus, o seu corpo estava tranquilo e calmo, com todos os prazeres naturais que lhe eram inerentes, sem quaisquer distúrbios exteriores. Mas, em razão de ter caído sob o pecado, decaiu em corruptibilidade, prazeres e imundícia, tendo sido agredida a natureza da carne e os seus membros submetidos a uma lei selvagem. A nossa natureza tornou-se, então, doente pelo pecado, pela desobediência de um só, Adão. Assim, tornamo-nos todos pecadores, não por sermos co-transgressores com Adão, mas, sim, em razão da natureza humana ter adoecido por seu intermédio, tornando-se sujeita à corruptibilidade pela desobediência e, portanto, invadida pelas paixões”.
São João Cassiano
O Oriente deu pouca atenção a Santo Agostinho e isso deveu-se, em grande parte, às barreiras linguísticas. Para os cristãos do Oriente, os teólogos sérios escreviam em grego e, assim, eles prestavam pouca atenção aos escritores latinos.
A oposição que surgia do Oriente a esses escritos de Agostinho provinham de alguns teólogos ortodoxos orientais que, por uma razão ou outra, encontravam-se a viver no Ocidente. Desses, o mais proeminente foi São João Cassiano, o qual opôs-se ao ensino de Agostinho em quatro pontos principais:
1) Houve, claramente, casos, nas Sagradas Escrituras, nos quais as pessoas buscaram Deus pela sua própria vontade e que, embora chamados por Cristo e auxiliados pela graça divina, optaram, também, por mudar as suas buscas (por exemplo, Mateus, Paulo, Zaqueu). Portanto, não é somente a graça que nos salva, mas também a disposição do homem para se arrepender.
2) Depois da queda, Adão e os seus descendentes mantiveram um conhecimento do bem e um impulso, porém enfraquecido, em prosseguir no bem. Logo, o homem não se tornou, conforme afirmado por Agostinho, totalmente depravado e incapaz de fazer o bem após a queda.
3) A “imagem” de Deus no homem é doente, mas não está morta. A imagem divina necessita de cura, mas esta exige uma sinergia (cooperação da vontade do homem com a graça divina).
4) Deus quer que todos sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade e aqueles que não são salvos são os que rejeitam a salvação, contra a vontade de Deus. A predestinação deve ser entendida, portanto, como um conhecimento prévio e não como uma preordenação.
O Ocidente condenou a perceção de São João Cassiano, ao considerá-la um semi-pelagianismo, mas para os ortodoxos, ele foi um dos maiores expoentes da doutrina ortodoxa da theosis. Os seus pontos de vista foram apoiados, também, por Teodoreto de Antioquia: “Há necessidade de ambos, dos nossos esforços e da ajuda divina. A graça do Espírito não é concedida àqueles que não fazem qualquer esforço e, sem a graça, os nossos esforços não podem receber o prémio da virtude “.
O Pecado Ancestral e o Batismo
A visão de Agostinho sobre o pecado original foi a razão para a sua justificação do Batismo infantil. Por acreditar que os bebés nascem culpados do pecado, argumentava que o Batismo seria necessário para a sua salvação. Ele considerava as crianças seres fisicamente fracos e, portanto, inocentes para, por si próprias, cometerem o pecado. Não obstante, deveriam ser culpadas, igualmente, pelo pecado de Adão.
Os Padres gregos, por terem uma visão diferente da queda e do pecado ancestral, interpretavam o propósito do Batismo infantil duma forma, significamente, diferente, das interpretações de Agostinho e dos seus similares reformados do Ocidente. Eles acreditavam que os bebés recém-nascidos são inocentes, totalmente desprovidos do pecado. Mesmo que as crianças sejam herdeiras da mesma natureza humana (a qual é maculada, na sua totalidade, pelo pecado ancestral e nisso é enfraquecida, de um modo que cada pessoa é propensa ao pecado), são inocentes do pecado. Na quarta das suas homilias catequéticas sobre o Batismo, São João Crisóstomo afirmou: “Batizamos os bebés, embora eles não sejam culpados dos pecados”.
Para os Padres gregos, o Batismo é, acima de tudo, uma aceitação e a entrada da pessoa batizada no corpo redimido e santificado de Cristo, o início de uma vida de combate espiritual e instrução, de uma santificada viagem de aprofundamento no Reino de Deus.
Considerando-se, então, o contraste entre a doutrina ortodoxa do pecado ancestral e a doutrina agostiniana do pecado original, e, consequentemente, o diferente entendimento sobre o significado do Batismo que essas doutrinas possuem, não é estranho que alguns ortodoxos falem do Batismo em termos agostinianos, ou seja, como perdão do pecado original, especialmente se pensarmos que o serviço ortodoxo para o Batismo não faz sequer uma única referência a isso? O mais próximo que chegamos da menção do pecado ancestral (πρωπατορικό ἁμάρτημα) no Batismo é a primeira oração do serviço para a adesão de um catecúmeno (que, originalmente, era completamente separado do serviço de Batismo): “Afasta-lhe o erro antigo “(παλαιά πλάνη). Ora, se um dos principais propósitos do Batismo fosse o perdão do pecado original, valeria a pena mencioná-lo, certamente, no rito do Batismo!
Contudo, a ideia de ‘pecado original’ e de ser “perdoado” pelo Batismo não pode ser encontrada no pensamento dos Padres gregos ou nos hinos e orações da Igreja Ortodoxa, pois é uma ideia estranha ao pensamento patrístico grego.
O pecado ancestral é, principalmente, uma condição de mortalidade e corruptibilidade, que precisa de cura; uma “doença” herdada, o que significa que o livre arbítrio – ou a ‘imagem de Deus’, como os Padres gregos preferiam caracterizá-lo – embora seja intactamente mantido, precisa da graça divina, a fim de progredir ao longo do caminho, para alcançar então a “semelhança” de Deus, o caminho para a theosis ou “deificação”.
Conclusão
Tendo em vista as diferenças significativas entre os pontos de vista ortodoxo e agostiniano acerca do ‘pecado original’, surpreende-me que alguns cristãos ortodoxos sejam, tão naturalmente, voltados a empregar este termo, alegando que a Igreja Ortodoxa mantém a doutrina do “pecado original”, ou tratando, simplesmente, de afirmar que a Igreja não abraça a doutrina do “pecado original”. Tais respostas, penso eu, são inadequadas para expor a posição ortodoxa acerca do tema.
Embora Agostinho tenha sido reconhecido como santo pela Igreja Ortodoxa, a sua doutrina sobre o pecado original nunca foi aceite. Então, se tudo o que foi exposto acima é correto, a doutrina agostiniana do pecado original é totalmente não-ortodoxa, tendo sido responsável, creio eu, por uma série de heresias existentes na Igreja Latina, como a predestinação, o purgatório, o limbo e a imaculada conceição.
Nós, ortodoxos, faríamos bem em distanciarmo-nos da mui conhecida posição agostiniana sobre o pecado original ao empregar um termo menos familiar: pecado ancestral. Não é apenas uma questão de semântica. Pois uma compreensão errônea da doutrina tem repercussões graves na nossa compreensão sobre o pecado e a queda, a graça e o livre arbítrio, o Batismo, a própria condição humana e a divinização do homem.
Fonte: http://www.pemptousia.com
P.S. O homem não realizou, ainda, a sua vocação. A Igreja ortodoxa vê nisso a razão da “queda,” a falta do primeiro homem – Adão – no qual está, miticamente, representada toda a humanidade. O mito da falta do primeiro homem exprime a solidariedade que liga todos os homens, tanto no bem como no mal. Se eu não vivo, em pleno, a minha existência de homem, afeto, necessariamente, pela minha influência pessoal e pelas consequências destrutivas que daí resultam no plano da sociedade, todos os que me rodeiam, no tempo e no espaço. “Adão” – o homem original – é o símbolo desta interação, na ocorrência negativa, que se exerce ao longo de todos os tempos, de geração em geração. Assim, o Oriente cristão encara o dogma do “pecado original,” a questão da nossa culpabilidade “em Adão”, de maneira diversa do Ocidente. É certo que, em virtude da solidariedade com “Adão,” nós sofremos todos os contragolpes do “seu” pecado, isto é, das escolhas e dos atos contrários ao humano – dos outros e de todos os que nos precederam –, desde as origens da humanidade. Mas os Padres orientais – e, no seu seguimento, os teólogos ortodoxos – insistem no facto de sermos responsáveis, não pelo “pecado de Adão,” mas pelo nosso, exclusivamente. Diversos Padres – entre os quais Gregório de Nissa, João Crisóstomo e outros – puderam, por isso, declarar que as crianças estão inocentes diante de Deus, pois ainda não tiveram a ocasião de cometer faltas pessoais. A célebre passagem do Apóstolo Paulo – “Por um só homem (Adão) o pecado entrou no mundo e, pelo pecado, a morte e, assim, a morte atingiu todos os homens, pelo facto de todos os homens terem pecado” (Rm 5:12) – é interpretada, neste sentido, pelos orientais: cada um sofre a morte, consequência do pecado, mas cada um é pessoalmente responsável. “Não é pelo pecado do antepassado que cada homem sofre a lei da morte, afirma Teodoro de Ciro (c. 395-460), mas pelo seu próprio” (Commentaire de l’Épître aux Romains, pg. 82, col. 160). Pois não teria sentido, para um crente ortodoxo, ser acusado da falta de um outro; a sua responsabilidade pessoal é, assim, ainda mais realçada. “Os Padres do Oriente, que liam o texto de São Paulo no original grego, nunca tentaram provar a responsabilidade dos descendentes de Adão pelo pecado do seu antepassado: constataram, apenas, que todos os homens receberam, por herança, a corrupção e a morte e que todos eles cometiam o pecado” (John Meyendorff: L’Église Orthodoxe hier et aujourd’hui. Paris, 1960, p. 169).
Redação final: Gabriela Mota