Em resumo, a adoração ortodoxa é ritualística porque:
(1) Deus deseja que nossos ofícios sejam ordenados como um reflexo de Si mesmo;
(2) Nosso Senhor deseja determinar um padrão de adoração para manter a unidade e evitar as divisões;
(3) Os ofícios fazem com que nos disciplinemos a prestar atenção, lembrar e participar, para que nos aperfeiçoemos na fé;
(4) A adoração é feita para ser trabalhosa, exigindo o melhor de nós para honrar a Deus.
Se compararmos aos cultos da maioria das igrejas protestantes e pós-Vaticano II das igrejas Católico-Romanas, o culto da Igreja Ortodoxa parecerá excessivamente formal, complicado e rígido nas suas rúbricas. Por que existem tantos rituais na Igreja Ortodoxa? Por que não há mais espontaneidade, criatividade e liberdade de expressão? Por que o ofício ortodoxo do Domingo – a Divina Liturgia – é essencialmente o mesmo semana após semana, ano após anos, por mais de mil e quinhentos anos? A maioria dos fiéis ortodoxos responderiam “Porque é a nossa Tradição”. Entretanto, entendemos porque é que a nossa Tradição é essa e por que os rituais são tão importantes para a nossa Fé Cristã?
A Necessidade de Paz e Ordem
Na verdade, a Bíblia e os Pais da Igreja raramente usam a palavra “ritual” ou “rito” quando descrevem as práticas cerimoniais religiosas cristãs ou judaicas. As palavras mais frequentemente usadas são “ordenanças” e “observâncias”. Essas palavras descrevem melhor o que deveríamos estar fazendo. Para muitos, “ritos” são apenas uma série de comportamentos padronizados que as pessoas fazem sem entender o significado – talvez até tenha existido um motivo para o comportamento, mas agora as pessoas “só repetem”.
Uma “ordenança” é um decreto de que uma atividade seja regulamentada (Hebreus 9:1), que seja mantida em uma sequência em particular ou dentro de certos limites. No que se refere aos ofícios de adoração, o Apóstolo Paulo afirmou, “todas as coisas devem ser feitas decentemente e em ordem” (I Cor. 14:40). A razão para isso foi dada em um versículo anterior: “pois Deus é um Deus não da desordem, mas da paz” (v.33). De fato, S. Paulo elogia a igreja em Colossos pelo quão ordenados (τάξιν) eles são (Col. 2:5). Dado que nossa atual Liturgia de S. João Crisóstomo é baseada na Liturgia do I século de São Tiago, que foi o primeiro bispo de Jerusalém, a Igreja ortodoxa sempre praticou uma forma ordenada e formal de culto.
Ainda assim, a formalidade do culto se origina ainda antes, nas práticas judaicas que se iniciaram 13 séculos antes de Cristo com o Êxodo de Israel do Egito. Deus, através de Moisés, proveu detalhes claros sobre uma forma muito ordenada e elaborada de culto centrado no Tabernáculo ou Templo. Por que? Porque Deus sabe como é fácil para a humanidade argumentar sobre diferenças de culto ao ponto de gerar confusão (Atos 19:32), preconceito (Jo 4:20), e violência (Gên. 4:3-8). Não é difícil olhar a história da humanidade e descobrir guerras que foram ao menos em parte justificadas por disputas sobre crenças e práticas religiosas. Embora o conflito entre fés provavelmente continuará (Jo. 17:14), Deus quer evita-lo no seio da igreja (Jo. 17:22-23). Por isso é necessário que a Igreja esteja unificada em Suas práticas de adoração. A igreja ortodoxa manteve a unidade da fé, em parte, por causa da manutenção precisa da fórmula de seu culto. Ao fazê-lo, a Igreja evitou muito da dissensão que se aplacou sobre outros ramos do Cristianismo.
A Necessidade de Atenção e Memória
“Observância” denota a necessidade de prestarmos atenção e de nos lembrarmos. Seis vezes durante a Divina Liturgia o padre ou diácono proclama a exortação “Estejamos atentos”. Deus não quer que a gente esteja distraído e falemos e participemos dos ritos com nossas mentes ocupados com trabalho, lista de supermercado ou com uma briga recente com esposo ou esposa. Essa adoração não seria “em espírito e em verdade” (Jo. 4:23-24). Deus deseja foco ao que cada palavra e gesto aludem durante a Divina Liturgia (e outros ofícios também). Isso exige disciplina de nossa parte, mas é precisamente através da disciplina que nos tornamos filhos e filhas justos de Deus (Hebreus 12:4-11). Observar a Divina Liturgia nos ajuda a “fixar nossos olhos em Jesus, o autor e aperfeiçoador de nossa fé” (Heb. 12:2).
Apenas sendo atentos iremos adquirir entendimento (Prov. 4:1, 20; 5:1; 7:24; 22;17), escutarmos as orientações de Deus para nós (Exo. 23:20-21), e recebermos Sua benção (Deut. 7:12-13; 28:13). Seguirmos os ensinamentos da Igreja tanto através das Escrituras (2 Ped 1:19) quanto da Tradição (Heb. 2:1) nos protege de cairmos em heresia sem perceber. Uma definição bíblica de observância que é muito boa, e da qual podemos nos lembrar ao entrarmos em uma igreja é: “Mortal, olha de perto e escuta com atenção, e com coração atento olhai tudo que Eu (teu Deus) irei te mostrar, pois fora para te mostrar estas coisas que trouxe-te aqui” (Ezequiel 40:4, veja também Isaías 28:23; 34:1).
A Bíblia está cheia de exortações não só para prestarmos atenção, mas para lembrarmos. Precisamos continuamente lembrar: de quem Deus é, como Deus nos salvou, dos milagres que dão testemunho do amor de Deus por nós, dos mandamentos que Deus nos ensinou, dos santos antigos que nos inspiram, e também lembrarmos daqueles que necessitam de auxílio de caridade ou intervenção divina. O ponto alto da Divina Liturgia é quando participamos do sacramento da comunhão, que foi dado por Deus para ser feito “em memória” de Cristo (Luc. 22:19; I Cor 11:24-25). Os ofícios ortodoxos de adoração, particularmente nas suas litanias e hinos, foram criados especialmente para nos ajudar a nos lembrarmos.
A Necessidade de Crescimento e Transformação
Algumas pessoas podem dizer que é muito fácil perder a atenção durante os ofícios ortodoxos exatamente porque são tão repetitivos. Alguns podem acreditar que certos cultos modernos prendem melhor nossa atenção porque mudam toda semana e portanto são mais estimulantes. Primeiramente, note-se que os ofícios ortodoxos não são completamente repetitivos – as leituras, homilias e alguns hinos mudam toda semana. Em segundo lugar, a repetição é boa para nós: é assim que se aprende. Além de ser uma assembleia onde damos a Deus o que é Seu de direito – louvor e gratidão – o culto ortodoxo é uma sala de aula que nos instrui sobre como devemos crer e nos comportar corretamente.
Parte do motivo pelo qual a adoração na Igreja Ortodoxa é tão ritualística é porque muita informação está condensada em um ofício de noventa minutos. É possível gastar décadas indo a Divina Liturgia todos os domingos e a pessoa não perceber todo o profundo e rico simbolismo de sentidos da cerimônia. A Divina Liturgia não muda porque sua fórmula nos ajuda a crescer em conhecimento e virtude e a nos tornarmos mais semelhantes a Cristo, que é o propósito de nossas vidas (Col. 1:28-29; 2 Ped. 3:18). Mesmo que nossa atenção se disperse de vez em quando (o que seria melhor evitar), acabamos absorvendo alguma coisa do ofício em nosso espírito e que abençoa nossas almas. A repetição é transformacional. Depois de um tempo, a Divina Liturgia se torna mas do que uma ordenação ou uma observância; se transforma em algo que é intimamente parte de nossas vidas – como o bater de nossos corações (e ninguém reclama que nossos corações repitam seus batimentos com o mesmo ritmo vivificante de sempre!).
Os cultos não-ortodoxos contemporâneos podem ser bastante divertidos. Instrumentos eletronicamente amplificados, o louvor emocional dos corais, a pregação dramática, as apresentações multimídia, tudo isso pode tornar o culto mais agradável. No entanto, assistir TV, ir no cinema, ou a um show de música também podem ser agradáveis. Mas o quanto lembramos desses eventos? Quanto deles nos ajuda a crescer em maturidade na Fé (Heb 5:12-6:1)? Devemos nos perguntar se Deus em algum momento quis que o culto fosse divertido. Não deveria ser algo diferente do que aquilo que o mundo produz? Não deveria ser algo que reverencia a Deus ao invés de algo que regala a congregação?
A Necessidade de um Culto Trabalhoso
“Liturgia” significa “trabalho do povo”. Deus deseja que O amemos com todo nosso coração, toda nossa alma, e com *toda nossa força* (Deut. 6:5, ênfase minha). Participar na Divina Liturgia não é uma experiência fisicamente confortável: temos que ficar de pé, nos ajoelhar, fazer prostrações. Ninguém assiste passivamente um ofício da Igreja ortodoxa (pelo menos não deveria). O povo é convidado a se envolver reverenciando os ícones, cantando junto os hinos, recitando o Credo, e juntando seus corações e vozes às orações. Se você não estiver um pouquinho cansado quando a Divina Liturgia tiver terminado, talvez você não tenha posto tudo de si na adoração do Senhor.
Embora a adoração possa ser uma celebração alegre (Sal. 100:1-2), as Escrituras deixam claro que Deus deseja que a adoração seja também trabalhosa. O primeiro caso registrado de adoração foi a história de Caim e Abel, os filhos de Adão e Eva, quando Deus aceita o sacrifício de Abel mas rejeita o de Cain (Gên. 4:3-7). Deus explicou que não seria qualquer oferta que seria aceita, mas apenas quando dermos o melhor de nós nossa oferta receberá Sua aprovação. Os animais sacrificados a Deus tinham que ser sem defeitos e portanto eram os mais valiosos do rebanho (Lev. 1:3). A Divina Liturgia foi refinada ao longo dos séculos para que seja o melhor ofício de adoração que podemos oferecer a Deus. Ela permaneceu a mesma desde então porque nenhum teólogo ortodoxo conseguiu imaginar um modo de deixa-la ainda melhor do que a versão de S. João Crisóstomo do século IV.
Em resumo, a adoração ortodoxa é ritualística porque (1) Deus deseja que nossos ofícios sejam ordenados como um reflexo de Si mesmo; (2) Nosso Senhor deseja determinar um padrão de adoração para manter a unidade e evitar as divisões; 3) Os ofícios fazem com que nos disciplinemos a prestar atenção, lembrar e participar, para que nos aperfeiçoemos na fé; (4) A adoração é feita para ser trabalhosa, exigindo o melhor de nós para honrar a Deus. “Portanto, já que estamos recebendo um reino que não pode ser abalado, sejamos gratos, oferecendo a Deus uma adoração aceitável com reverência e maravilhamento, pois de fato nosso Deus é um fogo que incendeia (Heb. 12:28-29).
“Nos convêm realizar todas as coisas em ordem, como o Senhor nos comandou a fazer em tempos pré-ordenados. Ele nos mandou realizar ofertas e ofícios. E essas coisas não são realizadas distraidamente ou sem regularidade, mas nos tempos e horas determinados”.
Clemente de Roma 96 DC
—
Publicado originalmente em The Path of Orthodoxy, Vol. 42, Nos. 4/5, April/May 2008 e no Pemptousia. Em português aqui.